quarta-feira, 4 de junho de 2008

Prefácio

Por José Arbex Jr.
Jornalista e Doutor em História Social pela USP


Qualquer pessoa educada segundo os princípios e concepções das religiões monoteístas que estão na base da civilização ocidental (judaísmo, cristianismo e islamismo) concordará, facilmente, com a afirmação de que a vida eterna é a recompensa oferecida aos que louvaram a Deus e praticaram o bem. Variam as metáforas e hipóteses sobre como será a vida eterna no além, mas não se questiona a idéia central. A morte, nessa perspectiva, aparece como punição aplicável aos que não se elevaram às alturas do paraíso. É a manifestação da ira divina.

Nada poderia ser mais estranho aos olhos de um seguidor das doutrinas orientais.

Para o hinduísmo, a vida é um período transitório no vasto complexo de um universo permanentemente em mutação, movido por um jogo de forças em oposição. Shiva representa destruição, agressividade, morte; Vishnu, no lado oposto, é a construção, compreensão, vida; Krishna é uma espécie de síntese. Muito esquematicamente, e correndo o risco de simplificar demais as coisas, é como se Shiva representasse as pulsões que Sigmund Freud qualificou como Tanatos; Vishnu, nesse caso, seria Eros; Krishna representaria um objetivo de equilíbrio perseguido pelo processo psicanalítico.

Também o taoísmo - uma espécie de meio caminho entre filosofia e religião, criado por Lao Tse (velho sábio, em chinês) cerca de 700 anos aC, quando, supostamente, escreveu o livro Tao Te King - trata a morte como um componente necessário ao movimento universal e incessante de todas as coisas. Para os taoístas, há duas grandes qualidades de forças: o pólo yang (o princípio masculino, ativo, extrovertido, quente) e o pólo yin (o princípio feminino, passivo, introvertido, frio). Vida e morte são o resultado intercambiável do jogo bipolar movido por essas forças. Não faz o menor sentido privilegiar um dos pólos e tentar ignorar o outro. Não há claro sem escuro, calor sem frio, positivo sem negativo, vida sem morte.

Outras tantas filosofias e doutrinas orientais, como o zen budismo, seguem esses princípios básicos. Aliás, como resultado prático, elas transformam a morte em conselheira do bem viver. Para o taoísmo, por exemplo, a sabedoria suprema do ser humano consiste em manter o bom humor, já que ele sabe que poderá morrer no instante seguinte; apenas aqueles que são loucos o suficiente para se julgarem eternos podem perder o próprio tempo com irritação, brigas inúteis, obsessões, fixações, rituais burocráticos sem qualquer sentido.

Essa postura, obviamente, intensifica, dá mais brilho e gosto à sensação de estar vivo. Para usar uma metáfora emprestada à publicidade, é como colocar uma tarja preta em volta de letras ou figuras vermelhas sobre fundo branco, como faz a Coca Cola em seus outdoors. A tarja preta faz com que a cor vermelha abandone o fundo branco e dê um salto na direção da retina, causando uma impressão muito mais forte.

A consciência permanente da morte, não como castigo ou punição, mas como possibilidade natural e inexorável, produz efeito semelhante sobre a sensação de estar vivo. Quem sabe que pode morrer no instante seguinte não tem tempo para se preocupar com besteiras. Nem leva a si próprio tão a sério.

Uma pequena anedota ilustra bem essa postura. Conta-se que o imperador chinês, impressionado com a fama de Lao Tse, envia os seus representantes para convida-lo a participar da corte. Os agentes do imperador encontram Lao Tse brincando com pequenas tartaruguinhas, à beira de um riacho. Ao tomar conhecimento do convite, o velho começa a rir, e responde aos oficiais: “Eu soube que na corte do imperador existe o casco de uma tartaruga gigante. É verdade isso?”. Intrigados com a pergunta, os oficiais confirmam. A tartaruga era um animal sagrado na antiga China; o seu casco representava a abóbada do universo. Então, o velho continua: “Pois se vocês pudessem perguntar para a tartaruga gigante onde ele preferia estar, ressequida na corte ou brincando na água, o que vocês acham que ela responderia?” Os oficiais ficam em silêncio. Entenderam o sentido da pergunta, mas não querem se comprometer com uma resposta que poderia irritar o imperador. Rindo novamente, Lao Tse se despede e diz: “Diga ao imperador que essa foi a minha resposta.”

Os filósofos pré-socráticos também tinham uma percepção dinâmica da morte. Heráclito, por exemplo, afirmava que nunca veríamos o mesmo rio duas vezes, já que suas águas estavam em movimento permanente. Apenas tínhamos a ilusão de se tratar do mesmo rio. O mesmo se aplicava a toda a natureza. A consciência deveria fazer um esforço de entender a incessante transformação de todas as coisas, segundo o processo de nascimento, vida e morte.

A idéia da imortalidade, na filosofia ocidental, ganhou força com Platão, para quem o mundo das aparências era o mundo do engano, da ilusão, do erro. Essa concepção foi tratada de forma magnífica no mito da caverna, quando Platão defende a idéia de que tudo o que os nossos sentidos percebem são sombras projetadas na parede por uma fonte de luz exterior. Se queremos conhecer as verdades das coisas, devemos abandonar o mundo das aparências, da carne, da matéria que apodrece e morre, e dirigir os nossos olhares e pensamentos para a luz imaterial da essência, do espírito. A verdade deve ser buscada no mundo das idéias, não na observação do mundo percebido pelo corpo (daí que o ideal seria que as sociedades fossem governadas por filósofos).

Opera-se, assim, na filosofia ocidental, uma divisão radical entre corpo e alma, matéria e espírito. A imortalidade passa a ser um atributo do espírito, ao passo que a morte pertence ao reino da matéria.

Ao longo da Idade Média, particularmente após a publicação da Cidade de Deus, por Santo Agostinho, a Igreja Católica transformou em dogma a idéia platônica da degradação e morte da carne, fonte do pecado e do erro. No auge de seu controle espiritual, era proibida até mesmo a observação da natureza, desenvolvida por Aristóteles e seus seguidores, como fonte de conhecimento. O mundo deveria ser explicado pelo texto dos sábios e doutores da Igreja. A morte, mais do que nunca, aparecia como expiação, punição, lembrança da pequenez do homem face à imensidão do poder de Deus.

O edifício monolítico católico começou a ser demolido pelos ciclos de navegações e descobrimentos científicos promovidos pela nascente burguesia, bem como pelos cismas no interior da Igreja Católica (incluindo o surgimento do protestantismo). Isso abriu brechas para que o homem renascentista fizesse calar a voz de Deus, colocando no centro a Razão científica. Foi o suficiente para que as indagações sobre a morte ganhassem crescente complexidade, em todos os campos do conhecimento, da arte e da cultura.

Não por acaso, o mais famoso monólogo da dramaturgia universal começa com uma pergunta absolutamente essencial sobre vida e morte: “Ser ou não ser, eis a questão”. Hamlet compara a morte ao sonho, e coloca a possibilidade do suicídio como forma de escapar às agruras e sofrimentos do mundo: “Morrer; dormir; só isso. E com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer – dormir – dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte, quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa.”

Hamlet inaugurou a subjetividade do homem moderno ocidental, já órfão das verdades divinas, mas ainda angustiado frente ao mistério da morte. Hamlet é o primeiro herói moderno por ser, ao mesmo tempo, trágico e autoconsciente. É o primeiro a observar, com ironia e horror, não apenas a sua própria obsessão (o mandado do fantasma de seu pai: matar o tio assassino e usurpador do trono), mas também as conseqüências de seus atos. É também o primeiro a se envolver até a morte num ritual de expiação, pessoal ou comunal. Com Hamlet, a morte torna-se um assunto de dimensão psicológica.

Também nesse campo, como em todos os outros, o homem moderno angustiado e órfão da fé volta-se para a Razão, em busca de soluções. A morte é transformada em assunto científico e pesquisa de laboratório. É mil vezes explicada, adiada, constrangida.

No século 20, o Estado totalitário (Stalin, Hitler, Mao) cria a morte industrial, em imensos campos de extermínio; os Estados Unidos inauguram a morte nuclear (Hiroxima e Nagasáki). Em outra vertente, pesquisas biotecnológicas prometem prolongar espetacularmente a vida média dos cidadãos, em algumas décadas; a criogenia cria métodos de conservação indefinida dos corpos, com possibilidade de ressurreição e acoplamento de cérebros a máquinas; ninguém duvida de que a ciência encontrará uma solução, cedo ou tarde, para a epidemia da Aids ou quaisquer outras, como a Sars.

A morte passa a ser uma ilustre dama, cortejada pelos laboratórios de guerra e seus irmãos gêmeos da indústria farmacêutica.

Mas, como ela acontece em nosso cotidiano contemporâneo? O que é a morte para nós, após todas as “experiências” totalitárias do século 20, incluindo a ameaça do holocausto nuclear durante a Guerra Fria? Como nós, concretamente, nos relacionamos com a morte?

O presente trabalho de Giselle Marques é muito importante e oportuno, por recolocar questões e ao mesmo tempo oferecer indicações preciosas para reflexões aprofundadas sobre o tema. A pesquisa ficou ainda mais rica pela escolha dos entrevistados, que fazem parte de mundos tão diversos (jornalismo, psiquiatria, psicanálise, empresariado). Elas oferecem um panorama singular. A própria Giselle aponta para as dificuldades de encontrar fontes teóricas ou mesmo trabalhos empíricos sobre o tema “morte” na perspectiva abordada por ela. Isso, certamente, já reflete o tabu que a cultura ocidental ergueu sobre um tema em geral considerado indesejável e “maldito”. Por tudo isso, o seu trabalho, certamente corajoso e incomum, é muito bem vindo.

Concluo com uma saudação a Giselle e a todos os seus leitores, derivada do sânscrito: “Namaste!”. Seu significado é muito profundo. Tomado ao pé da letra, quer dizer: “Eu me curvo diante de ti”. Mas, alguns praticantes do budismo preferem um outro significado, muito mais criativo e... vital!: “Que os deuses dentro de mim sorriam para os deuses dentro de ti”. E a vida continua.

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