quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo X

A morte não existe

"O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso".
A Hora da Estrela - Clarice Lispector


Antônia Vieira viveu mais de nove décadas e morreu nos anos 90. Casou-se três vezes. O primeiro casamento aconteceu quando ela estava com 12 anos de idade. Teve sete filhos com o primeiro marido.

No terceiro casamento, aos 78 anos, casou-se, na igreja e no civil, com um senhor solteiro oito anos mais novo e amigo de infância. A história da família de Antônia é repleta de velórios. Enterrou sete filhos, dois maridos e muitos outros parentes.

Joaquina de Paula foi a última filha de Antônia a morrer do coração, aos 46 anos. Foi no dia 11 de maio de 1976. Joaquina deu quatro netos para Antônia. Duas meninas e dois meninos: Machado e Abner*. As meninas morreram, Sônia aos três e Hilda aos 14.

Era década de 60 em um hospital de Votuporanga, interior de São Paulo, quando Hilda foi submetida a uma cirurgia na garganta. A mãe, Joaquina, acompanhou a internação. Depois de três dias, Hilda recebeu alta. Arrumou-se para deixar o local após receber a visita do pai, Sebastião.

O irmão mais velho, Machado, estava a caminho do trabalho quando resolveu passar no hospital, mas quando ele chegou, Hilda tinha acabado de sofrer um enfarte do coração. “Fazia três minutos que ela tinha morrido no portão do hospital logo após receber alta. Os enfermeiros socorreram, mas foi fulminante, não deu tempo de fazer nada”.

O enfarte de Hilda foi causado pela doença de chagas. Filho de Joaquina e neto de Antônia, Machado assistiu grande parte da família falecer por problemas no coração, que é um dos sintomas da doença de chagas.

O mal, causado pelo inseto conhecido como barbeiro, foi estudado pelo cientista do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Chagas: o único a pesquisar todo o ciclo da doença. Os estudos não avançaram até meados do século passado por causa de disputas políticas dentro dos institutos.

Tanto o Instituto Oswaldo Cruz como o Butantã estavam ganhando força internacional com suas descobertas. Foi na década de 70 que o então presidente Ernesto Geisel percebeu a importância estratégica da ciência para o país e priorizou o desenvolvimento tecnológico e a produção de imunobiológicos. Enquanto os responsáveis pela evolução da ciência brigavam por poder, Joaquina cuidava de seus filhos.

Apesar das poucas palavras, Machado deixa escapar que, desde criança conseguia prever as mortes iminentes. “Geralmente sentia cheiro de vela sem ter vela queimando por perto. Então era certeza que alguém ia morrer. Eu estava tomando banho enquanto senti cheiro de vela e minha mãe estava no hospital morrendo”.

Faltavam dois meses para Machado se casar quando sua mãe, Joaquina, faleceu atingida pela doença que atacou o coração.

O filho mais velho de Joaquina trabalhou desde os sete anos de idade: foi entregador de jornal, tipógrafo, policial militar, professor de ciências físicas e biológicas, bancário e hoje é corretor de imóveis. Quando fazia parte da Polícia Militar, aos 21 anos, Machado precisou conviver com a morte de pessoas estranhas, cuidar de corpos, resgatar cadáveres em matagais e afogados em rios e lagoas. Ele trabalhava na região de General Salgado, cidade pequena no interior de São Paulo.

Prudêncio de Moraes, conhecido como Cachorro Sentado, é um distrito pertencente a General Salgado, cidade próxima a São José do Rio Preto. Machado explica que o apelido da pequena cidade surgiu quando o padre da igreja local reclamava da falta de fiéis. “Dizem que o padre reclamava que o único ouvinte da missa era um cachorro sentado, daí o apelido pegou”.

Existe outra versão: a de que um estranho chegou na cidade e não encontrou nenhuma pessoa, viu apenas um cachorro sentado no meio da única rua principal. “O estranho comentou o fato em um boteco da vila e pronto! A cidade passou a ser chamada de Cachorro Sentado”, conta Machado.

Com menos de 10 mil habitantes, Cachorro Sentado guarda alguns assassinatos na história: na década de 70, um jovem de 23 anos fugiu com a namorada, fato comum em uma época cheia de proibições e controles morais. Na fuga, o casal se desentendeu e o rapaz esfaqueou a garota 33 vezes.

Machado e mais alguns policiais encontraram o corpo da moça no meio de um cafezal e o levaram para a delegacia. “Nunca tinha visto um cadáver assim, foi normal, não tive reação nenhuma. Na época, a gente não tinha muita preocupação porque não tinha o medo da AIDS, a gente pegou o corpo de qualquer jeito e colocou na viatura”.

Na delegacia, puseram o corpo nu da moça assassinada em cima de uma mesa e lavaram-no com água. O perito fotografou. Ela foi enviada para o necrotério. Foi feito o velório e o funeral. Era 1972.

Como era comum em cidades pequenas, os policiais faziam de tudo um pouco, inclusive o serviço de bombeiro. Uma mulher que morava na frente da delegacia tentou se matar, mas Machado e o Sargento Valdir correram para socorrê-la.

Misturaram água morna, sal e vinagre para que ela pudesse “colocar para fora” todo veneno que ingeriu. “Fizemos essa mulher tomar vários litros de água e foi o que a salvou, pois ela vomitou tudo. Levamos para o hospital e ela está viva até hoje”.

Na escola de soldado, como explica Machado, os rapazes recebiam treinamento sobre combate à incêndios, primeiros socorros, picadas de cobras venenosas e afogamento. “Preparo psicológico não teve nenhum, a gente aprendia no dia-a-dia com os mais velhos. Os mais antigos diziam ‘não esquenta não ô polícia, é assim mesmo, e toca a vida’, a gente aprendia com eles e ia tocando”.

Da mesma forma que um bom jornalista não rejeita uma notícia quente quando, teoricamente, está de folga, um bom policial também presta auxílio quando alguém necessita de socorro. Machado saía da escola onde estudava quando gritaram dentro de uma casa pedindo ajuda. Um senhor tinha acabado de falecer e os parentes não sabiam como agir. Edson ajudou a família a lavar o morto, vestir o paletó e colocá-lo no caixão.

Na vida pessoal de Machado, a presença da morte foi constante. Perdeu todos os tios, duas irmãs, a mãe, amigos e vizinhos. Quando morava em Votuporanga com os pais, em apenas um ano nove pessoas que moravam na mesma rua que ele faleceram, inclusive sua irmã e um amigo da família, o barbeiro Afonso Pena.

Machado presenciou mais de 60 velórios na vida pessoal e, como Policial Militar, conviveu com cadáveres e assassinos por cerca de dois anos. “Existe uma música que chama ‘Rock Bravo’ do Leo Canhoto e Robertinho que fala do assassino J.S de Cachorro Sentado”. J.S foi preso e ficou em General Salgado para ser julgado e condenado.

Machado conta que J.S. foi levado por dois policiais para a cadeia de Presidente Venceslau. “Eu fiz a escolta do assassino até Presidente Venceslau. Enquanto o outro polícia foi ver o horário certo do ônibus, aglomerou um monte de gente em volta do homem condenado à prisão. De repente, J.S. saiu agredindo as pessoas. Foi quando eu rolei no chão para poder segurá-lo. Meu outro colega apareceu e a gente conseguiu dominar o prisioneiro. Ele era um senhor negro com um e noventa de altura, tinha uns 100 quilos”.

Depois de 15 anos que Machado deixou de ser Policial Militar, soube que J.S cumpriu a sentença, saiu da prisão e logo matou um taxista em Auriflama. “Era um homicida nato”.

Como a maior parte dos entrevistados deste livro-reportagem, Machado conviveu de perto com a morte. Individualmente, cada profissional viu, ouviu, sentiu o cheiro, cuidou, vestiu, consolou, chorou, guardou imagens na memória e sentimentos na alma.

Alguns acreditam que a alma existe, enquanto outros parecem pensar da mesma forma como é cantado o verso na voz de Rita Lee: “não acredito em nada e até duvido da fé”.

Independente da maneira como cada ser humano lida com o fim da vida, as pessoas necessitam de símbolos para tentar entender a morte. A constatação parece ser um dos motivos para o mercado funerário propor avanços tecnológicos.

Adriana Fiori é psicanalista e também trabalha com a morte, mas “em um sentido simbólico”. Em 2002 ela colaborou para um estudo organizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). O trabalho teve o objetivo de mapear os impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas.

As mortes causadas em acidentes automobilísticos causam dor, sofrimento e muito prejuízo. Para chegar ao resultado da extensa investigação, foram examinados vários fatores que causam danos materiais: custo de perda de produção, de danos aos veículos, médico-hospitalar, de processos judiciais, custo previdenciário, resgate das vítimas, remoção dos veículos, danos ao mobiliário urbano e à propriedade de terceiros, danos à sinalização de trânsito, atendimento policial, atendimento dos agentes de trânsito, impacto familiar e custo com outros meios de transporte, que seria a soma das despesas do acidentado com passagens de ônibus, táxi e aluguel de veículo.

No total foram visitados 4.123 domicílios nas aglomerações urbanas de São Paulo, Belém, Recife e Porto Alegre. No País, o prejuízo com acidentes de trânsito chega a ser mais de R$ 5 bilhões anuais (a preços de abril de 2003). “Estes valores resultam somente dos acidentes ocorridos em área urbana. Os custos dos acidentes ocorridos em rodovias fora do perímetro urbano não estão incluídos, ainda que estes acidentes sejam os mais graves, são menos numerosos”.

O custo médio de um acidente sem vítimas é de R$ 3.262,00. Com vítimas feridas a média é de R$ 17.460,00. Se no acidente alguém morrer o valor médio do prejuízo sobe para R$ 144.143,00.

Apesar de ser uma pesquisa, o assunto morte requer, em qualquer circunstância, tato e delicadeza. Foi por isso que o IPEA contratou uma psicanalista.

Primeiramente Adriana recebeu uma lista de 400 pessoas que perderam a vida em acidentes de trânsito em 2001. Depois, ligou para a família de cada uma delas, mas apenas 50 aceitaram conceder uma entrevista que incluía um extenso questionário. “Eu fazia desde o primeiro contato por telefone até agendar e ir à casa da pessoa. Não podia ser feito por telefone, tinha que ser pessoalmente. Era um questionário longo e por telefone é um assunto delicado”.

Adriana precisou de três meses para concluir sua parte na pesquisa e, além de abordar óbitos, entrevistou 10 pessoas que tiveram graves seqüelas em acidentes.

Adriana afirma que não ficou abalada com as entrevistas: “Difícil me afetar porque eu sou treinada para não ser afetada”. Enquanto fala de morte, Adriana interrompe a entrevista por duas vezes para mostrar as flores que estão desabrochando no quintal de sua casa. “Daqui a pouco as outras vão se abrir, fique olhando”.

Das pessoas presentes no momento da conversa, ninguém lembrou o nome da flor que se abre toda no momento do crepúsculo. Adriana volta para o tema central da entrevista. “Nada me afeta. Mas eu fiquei impressionada com uma moça que perdeu o marido, motoqueiro, na rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo. Fazia seis meses. Ela tinha dois filhos. A delegacia contou uma história mal contada. O caminhoneiro que atropelou o rapaz tomou todas as providências e dizia que ele não era o culpado, o Boletim de Ocorrência era obscuro, não tinha uma descrição da morte dele”.

Quando a esposa do motoqueiro chegou no pronto socorro, recebeu um saco de roupa suja de sangue. “Sem preparo nenhum, sem ninguém para receber. Ela ainda chorava muito, tinha 34 anos e era muito bem casada. Ainda estava emocionada. Ela aceitou ser entrevistada pela revolta que estava sentindo e me dizia ‘eu faço tudo o que for preciso para quem for tomar providência a respeito do trânsito de São Paulo”.

Cerca de 70% das mortes pesquisadas por Adriana envolvia motoqueiros: “Eles morrem aos montes”.

Pessoalmente, Adriana diz que nunca teve medo da morte: “Eu fui determinada culturalmente, pela religiosidade da minha mãe, a achar que a morte é uma passagem. Houve uma época em que eu tive uma sadia angústia e hoje eu resolvi achar que a morte deve ser uma coisa muito legal”.

Adriana viu algumas pessoas muito próximas morrerem, inclusive a própria mãe: “Ela morreu tão bem que eu aprendi com ela. A última herança que ela me deixou foi me ensinar a morrer”.

Silêncio na mesa, as flores continuam a desabrochar. Coca-Cola, Guaraná Antártica e copos. A cada pausa na entrevista, Adriana engole um pouco do líquido doce e gasoso. Além de Adriana, estão presentes um de seus três filhos e sua nora.

Histórias de dor não faltam. Apesar de negar que as entrevistas afetaram sua sensibilidade, é difícil ficar indiferente ao sofrimento das pessoas. Outro caso que impressionou Adriana foi o de um acidente com um carro e cinco adolescentes. “O rapaz que dirigia estava brincando no trânsito e eles bateram em um paredão de concreto embaixo da avenida Angélica, cruzamento com a Paulista, no começo da Rebouças”.

O rapaz estava na direção e duas meninas estavam na frente, uma sentada no colo da outra, e mais três pessoas no banco de trás. Das duas meninas que estavam no banco da frente, uma morreu e a outra ficou paralisada do seio para baixo. “Eu não consegui falar com a mãe da menina que morreu, mas a mãe da menina que ficou paralisada me recebeu”.

A moça acidentada tinha 17 anos e ficou paralisada para o resto da vida. Usa fralda e sonda para urinar. “A mãe ganha R$ 400,00 como copeira de um escritório de advocacia. Além de cuidar dessa filha, ela faz salgadinho para vender”. Com o responsável pelo acidente não aconteceu nada. As famílias dos adolescentes eram do mesmo bairro, mas tornaram-se inimigas e não se falam mais. “Eu tentei entrevistá-las, mas não consegui”.

Com a discussão de tantos assuntos complexos, como o sentimento de perda e tristeza, perguntei à psicanalista Adriana se a morte pode traumatizar a ponto de não haver recuperação psicológica. Ela é direta e sucinta. “O prejuízo psicológico nas situações de morte não é o que você está imaginando, porque a morte é uma coisa que a gente não pode esconder. Ela é real e dói muito, mas não traumatiza. O que faz uma pessoa ficar psiquicamente desestruturada, traumatizada ou enlouquecer é justamente aquilo que ela não consegue dizer ou simbolizar. Morte, por incrível que pareça, não é uma coisa traumática no sentido técnico da palavra trauma. É real e está na consciência. Quem perdeu um parente da maneira mais trágica possível sabe que perdeu um parente da maneira mais trágica possível”.

As reações diferem de família para família. O material denso da pesquisa é analisado pela especialista, que explica a morte em ângulos psíquicos. Adriana tenta lembrar de casos diferentes para ilustrar como um óbito pode causar seqüelas ou apenas fazer parte da natureza.

Em uma das tentativas de entrevista para a pesquisa solicitada pelo IPEA, a psicanalista se deparou com uma mãe que teve seu bebê de um ano atropelado. “Eu liguei para ela no meio de agosto de 2002 quando eu comecei a fazer a pesquisa. O bebê tinha morrido no ano anterior”.

Com delicadeza, Adriana conversou por telefone com a mãe do bebê atropelado. Ao perguntar para a moça como ela estava, Adriana recebeu uma resposta com voz alegre, e tenta reproduzir o momento. “Ai, eu tô tudo bem, agora eu já tenho outro nenê”.

Adriana resolveu não entrevistar a mãe do bebê porque o perfil da moça não condizia com a direção da pesquisa, que era a de avaliar o prejuízo econômico das mortes causadas pelo trânsito. “Ela era extremamente pobre, morava em uma favela e devia estar habituada a ver crianças morrerem. No extrato de baixa renda os bebês morrem com muita freqüência e ela encarava isso tranqüilamente. Eu vi que ela encarava a morte do bebê do mesmo jeito que ela encarava a vida dela: descartável. Não por maldade, muito pelo contrário. Era uma moça de 20 e poucos anos, tinha a voz doce pelo telefone, mas o contato que ela tinha com a morte era esse”.

Na realidade, as pessoas atribuem sentidos à morte. “O que a gente sabe dela são os sentidos que a cultura nos fornece. Cada pessoa atribui o seu sentido particular à morte de alguém próximo. Um fica revoltado, outro fica triste, outros acreditam na vida depois da morte. Isso tudo são recursos de viver. Com relação à morte, nós não temos nada para dizer, nós temos o que dizer a respeito da vida”, completa Adriana.

Toda cultura sente a morte de uma maneira diferente. Os ritos são as únicas maneiras que o homem tem de conceber o fim da vida, porque o real da morte é inacessível, assim como são inacessíveis o nascimento e o sexo. “Você não tem a experiência do seu nascimento e da sua morte. A morte real de alguém conhecido você também não vê, você só tem que integrar um cadáver em sofrimento, uma perda, adaptação, luto, depressão. Freud chamava isso de melancolia. Ninguém pode saber o que é morrer enquanto estiver vivo. Por isso, a cultura ritualiza o óbito. Rodeamos a morte de palavras, linguagem e ritos. Usamos todas as maneiras de dizer o indizível: ah foi melhor, descansou. Cada cultura dá à morte o valor que ela dá à vida”.

Para entender a morte natural e a acidental, Adriana explica que, no caso do doente, quem descansa é a família. Quando morre uma pessoa que passou um longo período de enfermidade, a família tem uma grande sensação de alívio. Se não houver alguém para ajudar durante o luto, o sentimento de alívio pode trazer culpa. A pessoa que ficou se sente má.

A mãe de Adriana morreu de forma clássica, na cama do hospital, acompanhada pela família e pelos amigos. Durante seu último dia, ela chamou as pessoas para conversar e “fez todas as recomendações”. Como era espírita, seu grupo religioso esteve presente para acompanhá-la nos momentos finais. “Ela morreu com a dignidade com que ela viveu. Meu pai morreu no desespero e na angústia em que ele viveu”. Para Adriana, a importância da pesquisa não foi apenas a estatística, mas a confirmação de que “a gente vê a morte do mesmo jeito que a gente vê a vida, porque não tem morte para ver. Nós só conhecemos a vida, entende?”.



*Abner foi assassinado em 12 de julho de 2006.
Um tiro no coração.

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