quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo VIII

Quem crê em Deus jamais morrerá

"É mais fácil cultuar os mortos que os vivos. Mais fácil viver de sombra que de sóis. É mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro"
Minha Casa - Zeca Baleiro


Dezenas de barraquinhas de flores se misturam em frente ao Cemitério da Saudade de Campinas. Flores de todas as cores e aromas. Uma dúzia de rosas coloridas é vendida por R$ 5,00, enquanto uma coroa para velório varia de R$ 60,00 a 300,00.

A barraca mais próxima da porta do cemitério pertence à Maria Luiza Inocente Teixeira e seu marido, Ricardo Alves Teixeira, pai de seus três filhos. Há 23 anos trabalham com flores. Vieram do Paraná, passaram por Goiânia e pararam em Campinas há quatro anos. Eles cumprem o expediente das sete da manhã às sete da noite. Em dia de festas, o trabalho começa às cinco da madrugada. As datas mais rentáveis são o dia das mães, dos namorados e de finados.

Todos os dias Maria Luiza testemunha vários enterros: “Tem dia que tem uns 18 velórios”. Quando vê funeral de recém nascido e criança, Maria Lúcia fica chateada: “Isso não podia acontecer. Fico triste quando vejo um pai carregando um caixãozinho de criança, enquanto a mãe ainda nem saiu do hospital”.

Cada ritual tem sua particularidade. Os católicos cantam, os homens ciganos lamentam e os japoneses usam comida e incenso nos rituais: “Depois de alguns anos, os japoneses vêm lavar os ossos dos mortos”.

Maria Luiza observa o movimento enquanto faz os arranjos de flores: “Às vezes, tem família que enterra a pessoa e já sai brigando pela herança”.

As frases gravadas nas faixas que acompanham as coroas de flores são variadas: “Teve um senhor que cuidava de um monte de cachorro de rua e, quando ele morreu, a neta dele pediu para fazer uma faixa com os nomes de todos os cães”.

A florista acredita que o hábito de visitar cemitérios vai acabar porque as pessoas não têm interesse: “Aqui em São Paulo é estranho, os jovens não têm esse costume, diferente de Goiás e do Paraná. Isso tudo vai acabar. Dizem que no cemitério tem muito ladrão e assaltante, mas eu nunca vi isso por aqui”.

No outro canto da fileira de barracas trabalha Tatiana, uma moça de cabelos longos e cacheados. De acordo com a cor das flores, Tatiana procura imaginar como é a pessoa falecida que vai receber o arranjo que ela preparou. A coroa mais bonita é feita de rosas vermelhas. Alguns clientes choram enquanto solicitam o produto: “A gente fica olhando chorar, não dá para fazer nada, no máximo sugerir a frase que vai estampada na faixa. Às vezes a pessoa está chorando tanto que nem consegue falar”. Há alguns meses encomendaram uma frase para acompanhar uma coroa de flores e Tatiana nunca esqueceu a mensagem: “Quem crê em Deus jamais morrerá”.

Dentro do cemitério, entre muitos trabalhadores, existe uma única empreiteira que constrói túmulos. Elizabete Carrera trabalha em um campo predominantemente masculino. Ela gosta do local, mas reclama que o vandalismo destrói seu trabalho: “Góticos deixam preservativos e garrafas espalhadas. Cemitério não é para isso. Não colocam polícia, antes tinha guarda. De três anos para cá parou. Liguei para os jornais, mas ninguém veio. As pessoas têm medo de assalto. Tivemos prejuízo de R$ 1.400,00 por causa de um túmulo duplo quebrado”.

Elizabete segue a tradição de família junto com o marido. Os dois trabalham o dia todo dentro do Cemitério da Saudade de Campinas em concorrência com mais 14 equipes de empreiteiros.

A construção de um túmulo custa de R$ 1.600,00 a R$ 3.200,00. Em geral, ela e o marido, Edson Nazareno Brolacci Pinto, constroem apenas duas sepulturas por mês, pois as pessoas não investem no cemitério como era feito antigamente.

Além da construção de túmulos, eles realizam sepultamentos que custam de R$ 30,00 a 630,00. Os empreiteiros não são servidores públicos e precisam se submeter à supervisão da Setec. Eles são recadastrados anualmente e alguns trabalham na área há mais de 50 anos.

O marido de Elizabete freqüenta o cemitério desde os sete anos de idade e começou a trabalhar como empreiteiro, junto com o pai, quando tinha 13. Ele e a esposa estudaram até o ‘terceiro colegial’. Todos os dias a filha mais nova do casal, Larissa Gabriele Pinto, vai com os pais até o cemitério.

Enquanto Elizabete relata sua experiência, Brolacci se dependura em uma árvore para pegar frutas para a filha de quatro anos. A menina brinca o dia todo perto dos pais e corre entre os túmulos. Jeito sapeca e saudável. Elizabete conta que Larissa quase nunca fica doente: “No máximo, ela fica gripada”.

Tanto os avós quanto os pais de Elizabete trabalhavam no Cemitério da Saudade: “A família toda vive daqui do cemitério, do nosso trabalho”. Tirar férias não é possível: “Dá medo de dar as costas e acontecer alguma coisa”.

Lidar com morte é complicado e a prioridade da família que trabalha há décadas no mesmo local é atender o cliente com cuidado e educação: “Às vezes, a gente é influenciado pelo problema das pessoas. Vem mãe que perdeu o filho em acidente de moto, criança atropelada. Você vê coisas muito tristes. É um serviço desgastante emocionalmente, mas você muda seu raciocínio e dá mais valor à vida e à amizade. Você respeita mais o ser humano como gente. É um serviço digno e sofrido. Algumas pessoas desmerecem o nosso trabalho. Nós abrimos a porta do túmulo, guardamos o corpo lá dentro e cuidamos para que não exale cheiro. Há quem reclame do preço, que é de R$ 30,00 pela mão de obra do sepultamento. O corpo pode vazar e a gente perde a roupa. Se uma pessoa faleceu de insuficiência renal, o corpo está inchado, então a barriga pode romper quando a gente tem que inclinar o caixão para o sepultamento”.

Elizabete tenta não levar os problemas para casa e depois do expediente, se sente vontade de chorar, ela extravasa: “Ouço uma música, choro, falo, gesticulo. No cemitério, sou bastante profissional, mesmo assim fico amiga de muitas famílias que sepultam parentes aqui”. Para aliviar o peso emocional de trabalhar com a tristeza alheia, Brolacci costuma pescar.

Elizabete engravidou da filha mais nova aos 43 anos. Hoje, Gabriele está com quatro e os outros dois filhos mais velhos da empreiteira têm mais de 20 anos de idade. A vida de Elizabete não é fácil, mas a serenidade com que trata as pessoas é o tempero para a felicidade profissional e familiar. A mãe dela sofreu um derrame, não consegue entender a realidade e precisa de todos os cuidados: “Ela fica uma semana comigo e uma semana com a minha irmã. A gente divide o fardo. Eu tenho um bebê que quer atenção e minha mãe para cuidar”.

No cemitério onde trabalha, são sete alqueires para caminhar todos os dias. Mas ela não pensa em mudar de profissão: “A gente pega amor por isso. Tem gente que brinca e diz que se bebeu da água daqui, é difícil sair. Realmente é. Eu não sei explicar, acho que é porque passa de pai para filho. É o que nós sabemos fazer com amor”.

Como afirmado pela maioria dos entrevistados, lidar com a morte é mais tranqüilo do que com pessoas vivas. Elizabete explica por quê: “A partir do momento em que você morreu, eu não tenho mais nada a fazer por você, a não ser te guardar com carinho e respeito. O problema é que, atualmente, as pessoas se respeitam menos e parecem agir como máquinas. O ser humano busca o trabalho, mas não tem respeito. Não deseja um bom dia e passa por cima de tudo”.

Elizabete não tem uma igreja definida para freqüentar, mas reza todos os dias e acredita em um juízo final. “Se nós, que somos humanos ficamos esgotados, imagine Deus! Ele deve estar muito revoltado”. Parar de trabalhar no cemitério não faz parte dos planos dela. “Se eu parar, sou capaz de morrer de frustração. Eu gosto desse sossego, gosto de ficar aqui”. Ela costuma ler as frases gravadas nos túmulos. Certo dia se deparou com palavras escritas para um recém nascido: “Quanta ilusão desfeita nessa lousa”.

Há alguns anos, o pai de Elizabete teve um ataque do coração enquanto trabalhava no cemitério, e caiu em cima de um túmulo: “Chamamos a equipe do Samu. Eles não acreditaram na história, acharam que era brincadeira”. Conseguiram socorro com a Guarda Municipal de Campinas. O pai de Elizabete não sobreviveu. A entrevista acontece ao lado do túmulo dele.

A pequena Larissa aparece para pedir a atenção da mãe. O pai, Brolacci, vem chamar a família para ir embora. É fim de tarde. Eles são fotografados. A menininha esconde o rosto com vergonha.

Assim que Elizabete vai embora para casa com a família, os guardas noturnos chegam para cumprir doze horas de trabalho. Das seis da tarde às seis da manhã, os seguranças desarmados caminham por entre túmulos e capelas do cemitério. Pelo caminho está o cheiro de flor, a brisa e o silêncio.

Sem arma e sem carro, Wagner Destro, aos 42 anos, caminha 86 quadras por noite há três anos: “Para contornar o cemitério a pé levamos uma hora. Não sei porque tiraram o carro que usávamos para trabalhar”. Os túmulos são altos e facilitam que as pessoas se escondam. Em um terreno de mais de 80 mil metros quadrados, com três seguranças, é impossível evitar que os furtos aconteçam.

E eles não estão sozinhos durante as 12 horas de trabalho. Pela madrugada, algumas pessoas visitam o cemitério. Os mais conhecidos são os góticos e os roqueiros que, segundo os guardas, não representam perigo. Eles dançam, cantam e vestem roupas pretas: “Não fazem mal para ninguém”. Durante o dia, além dos funcionários, sepultadores e empreiteiros, outras pessoas transitam pelo cemitério para ler, desenhar, fotografar ou fazer artesanato. “Esse pessoal não atrapalha”.

Quando chove, algumas situações estranhas acontecem, como cães segurando os ossos que saem dos túmulos por causa da água: “A gente pega esse material e coloca em um saquinho”. Destro não tem medo da morte e é evangélico: “Eu nunca tive medo e nem vou ter. Creio em um outro lado melhor do que esse aqui. Quem tem Deus na vida, não tem medo da morte”.

Altair Alves Paixão é o segurança mais novo, com 27 anos. Há três ele trabalha nos cemitérios municipais de Campinas. “Nós somos os fantasmas do cemitério”. O medo só está presente por causa da possibilidade de assalto.

Antônio Aparecido é o mais velho e o único que não é evangélico. Para ele, o perigo da profissão fica por conta de tudo o que anda: “Os roqueiros são excelentes, o problema são os ladrões”. Quando o expediente acaba e o sol começa a aparecer no horizonte, a sensação e a resposta dos três seguranças noturnos é a mesma: “Alegria! A gente sente alegria”.

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