quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo VII

Os funerais de Campinas


"Silenciou de repente. Gemeu como um cão. E sobre o asfalto quente seu sangue escorreu suavemente todo pelo chão" Um ponto oito - John Ulhoa


Das 19 vítimas do acidente do dia 20 de maio de 1994, 70% eram clientes da Funerária João de Campos, em Rio Claro. O proprietário, Júlio César Reis, estava em São Paulo no dia da tragédia. Alguns moradores ajudaram os funcionários a preparar o funeral: “É uma coisa tão estranha. Quando alguém faz o plano não imagina que vai enterrar o filho depois dele tentar chegar na faculdade. Eu tenho funcionários competentes para administrar isso e um monte de gente da cidade acabou ajudando. Você não imagina a zona que deu!”.

Campinas difere de Rio Claro no que diz respeito à concorrência. Na cidade de um milhão de habitantes, a responsabilidade de recolher e arrumar os corpos para os funerais é do departamento de Serviços Técnicos Gerais (Setec).

Quando Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, foi assassinado em 2001, o Engenheiro Supervisor dos Cemitérios Municipais de Campinas, José Carlos Raineri, estava em casa. Ele ouviu a notícia na televisão e pensou: “Lá vem mão de obra”. A pressão causada aos responsáveis pela parte funerária de uma cidade é imensa quando se trata de tragédias ou da morte de pessoas importantes. Para um sepultamento importante como o de Toninho, foi preciso preparar o cemitério: “Ninguém dormiu naquela noite”.

Enquanto Raineri, conhecido como Paulista, preparava o terreno do Cemitério da Saudade para receber milhares de pessoas, Toninho era resgatado pelo Corpo de Bombeiros. O corpo do prefeito deu entrada no necrotério por volta da meia-noite. A perícia terminou o trabalho às duas e meia da madrugada e entregou o corpo de Toninho aos cuidados do Gerente de Divisão Funerária, Erivelto Luis Chacon.

Desde que ouviu um boato sobre a morte de Toninho, Chacon “ficou de prontidão”. Quando recebeu o corpo, avisou a todos que precisaria de um prazo para preparar o funeral: “Eu tinha prometido o corpo no velório às oito e meia da manhã e, às seis horas, a cidade inteira estava cobrando”. Chacon já tinha experiência com este tipo de pressão. Em 29 de fevereiro de 1996, ele foi responsável pelo corpo do então prefeito de Campinas, José Roberto Magalhães Teixeira.

Quando cuidou do funeral de Toninho, Chacon manteve o ritmo de trabalho para atender o pedido da população: “Eu sou uma pessoa muito técnica, se eu preciso de um prazo de oito horas para manipular um corpo, não adianta cobrar antes”.

Um comandante da polícia militar, o qual Paulista não lembra o nome, foi montar o esquema para receber as pessoas no cemitério. O comandante disse que era preciso deixar aberto apenas o portão principal para direcionar a multidão. Paulista não concordou, pois acreditava que era preciso abrir os outros dois portões existentes: “Se você fizer isso, nós vamos morrer aqui dentro. Não deu outra, dito e feito”.
Na manhã do sepultamento de Toninho, o movimento só não foi maior por causa do incidente em Nova Iorque, quando o atentado terrorista nos Estados Unidos desviou a atenção da mídia para a queda das torres gêmeas do World Trade Center. Mesmo assim, milhares de pessoas entupiram a avenida onde estava o caminhão que transportava o corpo de Toninho.

Houve congestionamento. As pessoas pulavam o muro do cemitério e as coroas de flores tiveram que entrar “pelos fundos”. Paulista assistiu e coordenou tudo com ansiedade: “O comandante tinha que facilitar o acesso e não direcionar. Fiquei com medo que aquele muro caísse. Foi terrível. Quando acabou, a sensação era de dever cumprido”.

A Setec é autarquia da prefeitura do município e, desde 1975, é responsável por todos os funerais de Campinas, Sousas e Joaquim Egídio; desde o atendimento às famílias, a escolha do tipo de funeral, o velório e local de sepultamento.

Setenta e cinco funcionários cuidam deste mercado que não enfrenta concorrência e providencia cerca de 500 velórios mensais. Na cidade existem cinco empresas particulares, chamadas de “Organizações de Luto”, que vendem planos funerários e cuidam da parte burocrática para o cliente associado. Mas o produto final, a urna e a arrumação do corpo, que vai ser enterrado em algum dos nove cemitérios da região, é direito e responsabilidade exclusiva da Setec.

Em Campinas existem três cemitérios públicos e seis particulares. A fiscalização de todos eles é função do poder público. Em Campinas não existe um crematório e, para usar este serviço, é preciso ir para São Paulo. O transporte do corpo para a capital paulista custa R$ 180,00 e para cremar são investidos mais R$ 320,00.

Chacon sabe que a cidade merece ter um crematório próprio: “Quem afasta a idéia do crematório é a igreja católica que não era a favor da cremação porque a bíblia fala ‘do pó ao pó voltará’. Os mais antigos não aceitam a cremação. Hoje, essa idéia está melhorando até na questão de doação de órgãos”.

O maior cemitério de Campinas é o da Saudade, onde os senhores do café ostentavam riqueza pela construção soberba das sepulturas, grande parte abandonada pelo descaso ou falência das famílias. Fundado pelo município em 1880, o terreno se localizava a 17 quilômetros do centro da cidade. Ocupa um espaço de sete alqueires com 32 mil sepulturas e com o registro de 480 mil óbitos. É o cemitério mais tradicional da cidade. Nele acontece a primeira cena do filme inspirado no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Dois funcionários da Setec participaram da filmagem carregando a urna do personagem principal, interpretado por Reginaldo Farias.

O local possui túmulos, mausoléus e capelas onde estão sepultadas personalidades como Francisco Glicério, Barão de Atibaia e Bento Quirino. Há mais de 120 anos o Cemitério da Saudade é considerado um museu a céu aberto por abrigar obras de arte esculpidas em mármore.

Por conta das características tradicionais e artísticas, o cemitério é alvo de interesse para a publicidade. Uma agência contratou modelos para serem filmadas e fotografadas entre os túmulos. Antes do ensaio fotográfico, elas se reuniram para conversar. Quem trabalhava nas bancas de flores ficou assustado e pensou que a cena pudesse anteceder a preparação de um ritual macabro, já que as modelos vestiam roupas pretas. A imprensa foi chamada e Chacon precisou explicar o que estava acontecendo. O fato foi publicado em uma nota no jornal.

Com uma área de sete alqueires abarrotada de obras de arte, à noite o Cemitério da Saudade é vigiado por apenas três seguranças. Eles circulam sem arma e sem carro. Paulista explica que o ideal seria terceirizar a segurança ou trabalhar em conjunto com a Guarda Municipal: “É o nosso grande desafio. A Guarda Municipal existe para tomar conta do patrimônio público, e o que acontece? Roubo de vasos e tudo mais”.

Alvo do vandalismo e dos ladrões, o cemitério é destruído aos poucos. Os seguranças são concursados e trabalham como “apontadores de fatos”, sem armamento e sem poder de prisão. O carro para fazer parte na segurança do cemitério foi tirado de circulação porque nem todos possuem habilitação: “Com o carro é pior do que a pé, pois não é em todas as ruas que o veículo tem acesso. Se alguma pessoa vê o carro, ela se esconde. Principalmente à noite”.

Afinal, são 32 mil sepulturas, uma ao lado da outra, distribuídas por todos os lados. Seria preciso uma bússola ou bom conhecimento do terreno para não se perder. O que possibilita enxergar a direção é o horizonte da cidade repleto de prédios.

O Cemitério Parque Nossa Senhora da Conceição, conhecido como Amarais, foi fundado em julho de 1969 e atualmente possui 22 mil sepulturas. Com 150 mil metros quadrados, o Cemitério dos Amarais é todo gramado e não possui túmulos ou capelas, mas apenas carneiros (gavetas) abaixo do solo. A estrutura deixa os falecidos em igualdade, pois não há apologia aos bens materiais adquiridos em vida. É ao lado do Cemitério dos Amarais que se localiza o Necrotério Municipal, com salas de necropsia e câmara fria, utilizadas pelo IML e pelo Serviço de Verificação de Óbito de Campinas.

O terceiro Cemitério Municipal está localizado em Sousas. Ocupa uma área de quatorze mil metros quadrados e é considerado “um dos mais bonitos da região”.

Um funeral custa dinheiro. Em Campinas, a quantia varia de R$ 300,00 a 12 mil, preço pago pelo velório do prefeito Toninho.

No mostruário estão expostos 25 tipos de urnas, desde a mais simples até a mais cara, incluindo as infantis. Em depósito, existem 149 modelos diferentes. Quatro fábricas são fornecedoras da Setec e o funeral é diferenciado pelo tipo de urna: detalhada, lisa, envernizada, tipo de alça, com ou sem visor e forramento interno.

Para a classe mais pobre, existe a quadra geral no Cemitério dos Amarais onde os corpos são enterrados na terra e permanecem no local por três anos até serem retirados. É cobrada uma taxa de R$ 9,00 para o sepultamento, mas existem famílias pobres que, depois de enterrar um ente, conseguem juntar dinheiro para colocar o corpo em um local fixo.

Se uma pessoa diz que é carente e pede o funeral gratuito, a Setec precisa atender o pedido mesmo que a pessoa aparente o contrário vestindo roupas caras ou dirigindo um carro novo.

A maioria dos óbitos de recém nascidos é destinada ao funeral gratuito. Quem optava pelo procedimento gratuito não possuía o direito de velar o corpo. A regra foi modificada, mas se o velório estiver lotado o espaço é prioridade de quem pagou.

Algumas pessoas escolhem não gastar com funerais nem com espaços em cemitérios. Outros, solicitam um funeral caro, mas sepultam na quadra geral. Aqueles que pagam pelo funeral mais caro costumam pedir o que a Setec tem de melhor e não fazem questão de escolher a urna ou a coroa de flores.

Chacon trabalha na Setec há quase 20 anos. Na sala dele há uma mesa, cadeiras confortáveis, computador e um grande quadro pintado à mão. Muitos girassóis. Ele não foge à regra quase absoluta de trabalhar no ramo por conhecer um parente envolvido com o mercado que cuida de corpos sem vida.

O irmão de Chacon trabalhava em uma funerária de Campinas na década de 70: “O meu irmão foi gerente da funerária Davi, que na época era concessionária da Santa Casa. Quando criaram a Setec, em 1975, ele veio administrar o serviço. Em 1984 saí do quartel, então ele me convidou para vir e estou aqui até hoje. Eu sou um dos últimos funcionários que entrou na Setec sem concurso”.

Chacon começou como agente funerário e confessa que trabalhar para o setor parecia diferente. Ele é exigente e cobra dos funcionários e de si mesmo que o trabalho seja bem feito. O único serviço que ele ainda não fez foi a coroa de flores. Prefere mexer com um corpo a ficar na mesa despachando papel.

Com Paulista foi diferente. Ele estudava Matemática na Puc Campinas, mas desistiu do curso. Começou a faculdade de Engenharia Civil e conseguiu um estágio com um amigo que era presidente da Setec. Paulista começou a cuidar do arquivo de plantas da prefeitura e em dois meses foi transferido para a Setec. Por causa de um projeto no Cemitério dos Amarais, Paulista foi contratado para administrar o local e logo começou a gerenciar os outros dois cemitérios municipais: “Antes eu nem passava na calçada de cemitério. Foi diferente, mas depois vi que tinha muita gente trabalhando. É uma área que você tem que ser um pouco herói porque você ajuda alguém, mas ao mesmo tempo não consegue ajudar”.

Tanto Chacon quanto Paulista procuram se atualizar profissionalmente e participam de eventos importantes da área funerária. A Setec faz parte da Associação dos Cemitérios do Brasil (Acembra), um grupo que era formado somente por cemitérios particulares, sendo a Setec o primeiro setor funerário municipal a ser convidado para integrar a Acembra.

No futuro, Chacon pretende criar a Associação dos Cemitérios Públicos do Estado de São Paulo: “Há muita diferença entre você trabalhar no serviço público ou em uma empresa privada. Os objetivos são diferentes”. No serviço público é preciso fazer tudo com o menor custo para ter resultado, enquanto as instituições privadas buscam vender cada vez mais o seu produto: “De qualquer forma eu não conheço ninguém do ramo funerário ou mesmo de cemitérios que não se deu bem”.

Antes do advento dos cemitérios, os mortos eram enterrados em fazendas ou nos quintais das igrejas. Com o aumento da população, inauguraram o Cemitério da Consolação em São Paulo que atualmente se localiza dentro da cidade.

Para ser dono de um cemitério, primeiro é preciso ter um terreno. Se for em Campinas, o espaço vai passar pela supervisão da Setec, do Conselho Nacional do Meio Ambiente e de outros órgãos nacionais: “É preciso impor a regulamentação. No Brasil inteiro você vê cada absurdo! Tem gente que sepulta um corpo a um metro de profundidade, onde passa água. Tem muito detalhe técnico”. É preciso que todos os requisitos estejam de acordo com o Procedimento de Implantação de Cemitérios, como a existência de velório e estacionamento.

Para estacionar no espaço reservado ao Cemitério da Saudade de Campinas é preciso pagar R$ 3,50. O dinheiro é destinado a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).

Os servidores públicos que precisam lidar diariamente com a morte não possuem apoio emocional, mas há situações em que eles desempenham a função de assistentes sociais para as famílias que estão aparentemente mais abaladas. Na Setec, o único responsável pela saúde dos funcionários é o médico do trabalho.

A assistente social Sandra Regina Camargo seria a pessoa indicada para dar suporte emocional àqueles que são prejudicados pelo tipo de trabalho que realizam, mas ela cuida dos trabalhos referentes ao departamento de Recursos Humanos: “Infelizmente não tem serviço social ou psicológico para os funcionários”.

O trabalho braçal de recolher os corpos sem vida é responsabilidade dos motoristas. No edital do concurso está descrita a atribuição do cargo e, na prova, existe um teste prático no necrotério para que os candidatos possam ver os cadáveres: tocar, sentir e conhecer as diversas fases e faces da decomposição. Com a leitura do edital, alguns não se convencem da abrangência da função a ser exercida e passam para o exame prático: “Na prática, 10% desiste. Alguns, pela necessidade do dinheiro, tentam enfrentar”.

Para remover cadáveres, os funcionários usam proteção individual para evitar o risco de contaminação: “Alguém pode morrer num acidente, mas ser portador de AIDS ou tuberculose”.

Anderson Lima é motorista da Setec há mais de quatro anos. Gosta do que faz, mas tem que enfrentar situações de perigo: “O trabalho não é difícil, depende do lugar. Difícil é ir à favela de madrugada, já atiraram na gente atrás do Uemura. Saímos do local sem o morto, buscamos reforço e voltamos. Resgatar corpo em lagoa também é complicado”. Os afogamentos são comuns no verão.

Rosalina Clara Pereira trabalha na Setec e é uma das pessoas responsáveis pela preparação de corpos para velórios. Ela era técnica de enfermagem e chegou a tratar de um paciente acidentado por mais de dois anos. A maior dificuldade não é preparar um cadáver para o funeral, mas lidar com o sofrimento das famílias: “Às vezes a família vem aqui, debruça em cima da gente e começa a chorar. Conta histórias de como o falecido ficou doente. Aí você tem que ouvir. Não fico chateada com isso, mas fico triste junto com a família”.

Rosalina fica atenta para não levar tristeza para casa: “Só conto os casos mais pitorescos e interessantes. Uma vez fomos buscar um corpo em uma casa de repouso. A pessoa tinha falecido na cadeira de rodas. A gente chegou e cumprimentou o idoso que estava na cadeira. Foi então que avisaram que o corpo era da pessoa que a gente tinha cumprimentado”.

Quando Rosalina precisa preencher cadastros com seus dados, como idade e profissão, ao dizer que é atendente funerária, as pessoas ficam curiosas e perguntam muito: “Enchem a gente de perguntas e até esquecem do que estavam fazendo. É comum a curiosidade. Não me incomoda, sempre respondo. Nunca senti preconceito e tenho orgulho do que eu faço. Tem gente que esconde. Eu poderia estar dentro do hospital, mas prefiro aqui. No hospital o sofrimento é continuado. Aqui não, você sofre naquela hora e acabou”.

Hoje, como atendente funerária, Rosalina está adaptada: “Primeiro eu tratei de doente e agora cuido de morto”. Ela não permite que a família da pessoa falecida veja a arrumação do corpo: “A família não pode ver porque para eles dói muito. Coloco gesso no nariz e do corpo vaza de tudo. De enfarto vaza sangue. Quando o problema é no estômago vaza líquido escuro ou de outras cores. Problemas de fígado, pâncreas ou hepatite, o líquido é amarelo. Às vezes sai fezes pela boca”.

Em meia hora Rosalina consegue arrumar um corpo “magrinho e em ordem”. Ela faz os tamponamentos, que é o procedimento de obstruir os orifícios do corpo (nas partes genitais o tamponamento é feito no hospital), a maquiagem, coloca as roupas, as flores, penteia o cabelo e faz a barba. Tudo com o corpo dentro da urna.

Enquanto Rosalina explica como faz o serviço e espera a chegada de um corpo gordo “que dá muito mais trabalho”, o motorista João Batista chega para avisar que o falecido obeso precisou passar primeiro pelo IML. “Ainda bem”, diz Rosalina, aliviada.

Há 11 anos na Setec, Batista trabalha 12 horas por dia, fala rápido e fica comovido quando tem que fazer remoção de criança: “Uma criança ficou pendurada pelo pescoço no vão da cama enquanto dormia, devia ter um ano de idade”. A mãe dormiu, o bebê escorregou e morreu enforcado. Batista defende a mãe que nem conhecia: “Cansada, ela dormiu. Não teve culpa. São coisas que fogem do nosso alcance”. As situações que Batista vê durante o dia, ele não conta nem aos familiares: “Não divido com ninguém, divido com a Jurubeba que tomo no bar depois do serviço”.

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