quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo VI

SP 127 – A duplicação


"Oh morte, tu que és tão forte, que matas o gato, o rato e o homem, vista-se com a mais bela roupa quando vieres me buscar..."
Canto para minha morte - Raul Seixas


Rio Claro estremeceu quando a notícia do desastre chegou aos lares de pais, mães e irmãos. Foi decretado luto oficial de três dias na cidade. A mídia cobriu o fato. Amigos assistiram pela televisão o desespero de famílias inteiras entre os caixões enfileirados no Ginásio Municipal Manoel Antônio Bortolotti, onde aconteceu o velório de 12 das 19 vítimas. Milhares de pessoas velaram os corpos.

Depois do acidente do dia 20 de maio de 1994, algumas mudanças foram realizadas na região de Rio Claro. Mesmo com a sentença da justiça, que descreve que “não há sequer indícios de que a má conservação do local tenha influído no acidente”, a pressão feita por alguns políticos e moradores resultou na duplicação da SP-127, conhecida como Corredor da Morte.

João Carlos Picolin é jornalista e Coordenador do Curso de Comunicação Social das Faculdades Claretianas de Rio Claro. Ele fez parte da Comissão 20 de Maio na luta pela duplicação da SP-127. Na noite da tragédia, Picolin, que também era estudante, já estava na Unimep quando os alunos sentiram falta dos colegas que não chegaram. A primeira hipótese foi a de que o ônibus tivesse quebrado pelo caminho. Um outro veículo da Companhia Cidade Azul foi procurá-lo em Piracicaba, mas não achou: “Daí todo mundo pensou que o ônibus pudesse ter quebrado na SP-127. Ligamos para a Companhia Cidade Azul e informaram que o pessoal do ônibus do Coroné não tinha dado notícias. Logo depois ficamos sabendo do acidente”.

Picolin percebeu que o fato era sério. Ele e um grupo de estudantes passaram nas classes para avisar que todos os ônibus de Rio Claro iriam embora na hora do intervalo: “Começou uma loucura. Filas no orelhão. Há 10 anos não tinha a facilidade do celular. A gente saiu batendo de sala em sala para avisar que, às nove horas, quem não estivesse dentro do ônibus ficaria para trás”.

Todos os estudantes de Rio Claro que estavam na Unimep voltaram para a cidade. O clima era de expectativa e tensão. Quando passaram pelo acidente, viram que o ônibus não estava arrebentado: “Foi animador, o ônibus estava inteiro!”. Picolin achou que tudo aquilo não passava de brincadeira, mas quando conseguiram enxergar o outro lado do veículo, foi o caos: “O outro lado do ônibus praticamente não existia, era ferragem contorcida. Colocamos o pé no chão, tinha sido grave. Mesmo assim, não tínhamos a noção do estrago”.

Ao relembrar o momento em que chegou na casa dos pais, Picolin respira fundo e se cala por alguns segundos. Os olhos dele ficam emocionados: “Meus pais estavam inconsoláveis”. Com a confusão, ele foi dado como morto. Picolin ligou para a Rádio Cultura e seguiu até o estúdio para entrar no ar e contar como foi a situação em Piracicaba: “Não me envolvi com a cobertura do acidente, fui para dar meu depoimento”. No ar, Picolin disse à população que, até aquele momento, ele e muitos outros jovens tinham sido omissos em relação à luta pela duplicação: “A gente tem que fazer alguma coisa. Então eu proponho que a comunidade de Rio Claro interdite a estrada amanhã após o último enterro”.

Ele não imaginou a força de seu pedido!

“Poderíamos ter feito algum movimento antes, mas só percebemos quando o problema nos abraçou. Pela rádio, eu disse que deitaria no meio da estrada como forma de protesto”. Assim que parou de dar seu depoimento, Picolin percebeu o desafio que seria lutar pela duplicação da SP-127: “Tinha uma pessoa no telefone esperando para falar comigo. Ele me perguntou em que local da estrada eu ficaria, pois ele fazia questão de passar por cima de mim”. Na noite de 20 de maio de 1994 a cidade parou, a cidade não dormiu.

No sábado, depois do último enterro, cerca de 17 manifestantes seguiram para a SP-127. Interditaram o começo da estrada e ficaram atentos para não criar problemas. Escolheram um local com boa visibilidade, deixaram espaço para viatura, carro-forte e ambulância. A polícia rodoviária deu cobertura. O primeiro protesto durou meia hora. Enquanto protestavam, tiveram a idéia de fazer uma camiseta. De um dia para o outro conseguiram apoio e estamparam na frente de 50 camisetas: “Sou estudante, viajo todos os dias pela Rodovia da Morte”. No verso: “Até quando?”.

Três dias depois da tragédia, uma carreata passou por Rio Claro e seguiu para a SP-127: “A adesão da comunidade foi inacreditável. Lógico que teve gente que não apoiou por causa do atraso para os carros na estrada. Um homem de Curitiba estava com a família e veio tirar satisfações. Fazia dois dias que ele estava viajando e parecia desesperado para ir para casa”. Picolin contou ao motorista qual o motivo do protesto, o qual disse: “Foi aqui que aconteceu o acidente dos estudantes? Espere um pouco!”. Ele atravessou o carro na pista e se misturou aos manifestantes. O desconhecido participou, com a família, do protesto da segunda-feira.

Depois de dar início à manifestação, Picolin e seus amigos pensaram: “E agora, como vamos batalhar pela duplicação?”. O prefeito da época, Nevoeiro Jr, disse aos estudantes que aquela era a maior mobilização social da história da cidade de Rio Claro e o empresário Sérgio Bittar propôs a criação de uma comissão.

“O senhor vai cumprir a promessa ou não?”. A frase foi dita no dia 15 de março de 1997 pelo deputado estadual Aldo Demarchi ao governador de São Paulo, Mário Covas. Na empreitada, carregavam um dossiê com os dados dos últimos dez anos da estrada: acidentes e prejuízos para a região eram constantes.

Em 15 de março de 1997, às 15 horas, no Palácio dos Bandeirantes, Aldo Demarchi conseguiu uma audiência definitiva para saber se o governador Mário Covas autorizaria a promessa que ele tinha feito em sua campanha. “Mário Covas autorizou a obra. Ele se sensibilizou com o dossiê e com o grande número de informações. O que mais o mobilizou foram as fotos e as notícias do acidente dos jovens estudantes. Naquela hora ele parou em cima dos documentos... ele parou duas vezes e daí falou: Olha, você é persistente. Baseado nisso, nós vamos autorizar”.

A reivindicação para a duplicação tinha mais de 20 anos e esta foi realizada por conta do Estado. Inicialmente, estava orçada em 62 milhões de reais e o governador Mário Covas fez a proposta de que fosse reduzida para 40 milhões. A estrada ficou pronta em um ano e inaugurada no dia 27 de setembro de 1998. Demarchi afirma que o governador Mário Covas pagou a obra e os trabalhadores religiosamente. “Não teve atraso, ele cumpriu a palavra dele”.

Para Demarchi, a morte é o fim de uma missão, de um trajeto: “Naturalmente é estabelecido que você tem um período para viver: sete, oito ou nove décadas. Natural é o filho enterrar os pais e não os pais enterrarem os filhos, isso choca”.

De uma família de nove irmãos, a morte de uma irmã de Demarchi deixou marcas: “Na minha família ficou uma seqüela muito grande com minha mãe. Na minha casa perdi uma irmã com 42 anos. Ela foi acometida pelo câncer e apesar de minha mãe ter nove filhos, os oito irmãos que ficaram não supriram a falta dela. Minha mãe jamais imaginou que ia enterrar uma filha”.

No domingo, dia 22 de maio de 1994, a família Pessoa acordou cedo para ir à missa. Na igreja, Simone chorava sem parar e ouviu da mãe as palavras que a ajudam e a acalmam até hoje quando sente falta do irmão: “Quando você dá um presente para uma pessoa que você gosta, você dá com carinho, você não chora. Se você deu seu irmão para Deus, não peça ele de volta e não chore mais”.

Ao ouvir Simone durante a entrevista, Constância não segura as lágrimas e pede um lenço. Respira fundo, enquanto a filha, com voz calma e doce, continua a contar como foi o último dia da vida de Jyl. Ela lembra dele com carinho e diz que vive com as lembranças boas da convivência: “Às vezes aperta o peito e transborda pelos olhos”.
A mãe tenta explicar a ausência do filho: “Era o dia dele, mas eu tenho que colocar na cabeça que ele teve um dia para chegar e teve um dia para partir. Ele foi feliz. Sou mãe, dói, claro que dói. Há tempos ele vinha falando coisas que eu não entendia, batia com a mão em minhas costas e dizia: santa inocência”.

Enquanto profissionais responsáveis pelos funerais cuidaram dos corpos, a cruel fidelidade dos fatos era publicada em jornais. Simone guardou cuidadosamente todos os artigos que encontrou sobre a tragédia e os papéis estão amarelados pelo tempo. A Folha de São Paulo de 22 de maio de 1994 descreve, no caderno regional, que o motorista do ônibus da Companhia Cidade Azul teria tentado uma ultrapassagem e se chocado com um caminhão: “Barbosa não teria conseguido desviar e os veículos acabaram batendo de frente. Com o choque, a carreta abriu a lateral direita do ônibus. Os passageiros que estavam sentados deste lado foram jogados na pista e atropelados pelo caminhão. Vários corpos ficaram espalhados na estrada”.

O Jornal Cidade de 22 de maio de 1994 relembra o acidente menos trágico de 1986, quando um ônibus que transportava estudantes da Unimep se chocou com um caminhão que fazia uma ultrapassagem arriscada. Os dois motoristas morreram: “Duas pessoas morreram e 25 ficaram feridas na noite de quinta-feira, 3 de abril de 1986, no acidente ocorrido no quilômetro 19 da rodovia Rio Claro-Piracicaba”. Ainda no mesmo jornal, o desastre que matou 19 pessoas foi assunto em todos os cantos. Este é o exemplo das manchetes apenas da página três: “Acorda, Rio Claro!”, “Tragédia mata 19 na Rio Claro-Piracicaba”, “População revoltada realiza protesto na Rodovia da Morte”, “A tragédia no Corredor da Morte”. Entre tantas palavras está a homenagem ao filho de Constância: “Ao nosso amigo Jyl: É muito importante ter consciência da sua vontade de vencer e o quanto você queria isso, como construir e de onde veio tanta força. Não era só coragem ou ambição. Tinha muito coração no que você fazia. Aprendemos muito com você. Vai com Deus... amigo”.

Enquanto alguns choravam o fim da vida, outros, apesar de abalados, não acreditavam na ‘sorte’ que tiveram. Em uma matéria da página dois do Jornal Cidade está um simples depoimento de Valdir Antônio Duarte Filho: “Perdi hora e resolvi não ir para a aula”. Na Folha de São Paulo a manchete é sobre Tatiana Dorante: “Estudante escapa com vida por estar do lado esquerdo”. Assustada, ela disse ao jornal que não queira mais estudar: “Estava distraída quando o ônibus virou, mas consegui sair pela janela ajudada por duas pessoas que estavam do lado de fora. Muitas pessoas estavam deitadas no asfalto chorando e pedindo socorro”.

Na mesma matéria está a entrevista com outra estudante, Maria Teresa Bordinhão. Ela explicou que estava dormindo e que, quando acordou, percebeu que estava presa entre dois bancos: “Minutos depois, desmaiou, e quando acordou novamente estava no asfalto sendo socorrida por uma amiga que vinha de carro. No hospital, ela ainda não sabia que a amiga Márcia Carbinatti, que estava sentada ao seu lado no ônibus, havia morrido”.

Nenhum comentário: