quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo V

O corpo de Nercina


"Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?"
A hora íntima - Vinícius de Moraes


O acidente que interrompeu a vida de Jyl aconteceu há 10 anos na SP-127, rodovia que liga Rio Claro a Piracicaba, no interior de São Paulo. Além de Jyl, 18 vidas se perderam no choque entre o ônibus da Companhia Cidade Azul e o caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda. O motorista do ônibus, Djair Nunes Barbosa (conhecido como Coroné), era de Rio Claro, e o motorista do caminhão, Sérgio Calmo Moura, era de Campinas.

Na estrada, que era de pista única, foi formada uma poça de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio de 1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas chegavam em busca de informações sobre familiares que estudam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos daqueles que perdiam parentes e amigos”.

A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente. A culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes, publicados nos jornais da época, confirmam que a história foi diferente.

Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de 1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um profissional prudente e responsável. Por este motivo, antes do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus para poder viajar todos os dias com ele no volante. Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém contratado da empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria o ritual de acompanhamento por um motorista mais experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a culpa.

Da Santa Casa, o corpo de Jyl foi levado para o IML. Um cunhado foi reconhecer o corpo. Na correria, causada pela tragédia, o serviço funerário esqueceu de colocar uma proteção para forrar a urna que o carregava. No velório, que aconteceu no Ginásio Municipal Manoel Antônio Bortolotti, o corpo dele começou a pingar sangue. Simone lembra que colocaram um balde embaixo do caixão. Ele foi o primeiro a ser enterrado.
Quando Jyl estava vivo, Constância comentou que gostaria de ser enterrada no Cemitério Parque das Palmeiras, onde ele trabalhou aos 13 anos de idade como cobrador. Jyl ouviu calado e comprou o terreno sem avisar a família. Quando ele morreu, o terreno no cemitério estava pago e a família não precisou se preocupar com o destino de seu corpo.

Seria possível uma família escolher o cemitério, o funeral, a urna e tudo pelo melhor preço? Além do terreno disponível no Cemitério Parque das Palmeiras, o funeral foi providenciado pelo pai do sócio de Jyl: “Como o acidente pegou todo mundo desprevenido, isso ajudou muito. Jyl era organizado e não deixou nenhum assunto pendente”, explica Constância.

Pendência é o que não falta para quem está vivo e tem que providenciar um funeral. Para facilitar a vida da população, existem os serviços funerários. Em Rio Claro, funcionam três empresas do ramo. A funerária do Grupo Bom Jesus, a João de Campos e a Municipal.

Na casa alugada, localizada em uma esquina, está a funerária do Grupo Bom Jesus. Logo na recepção, uma jovem mulher. Móveis aparentemente velhos e um vaso com flores do campo quase murchas. A funcionária é Suzana da Silva Câmara. Há sete meses na funerária, ela nunca viu um cadáver: “E nem quero ver”. Ainda não se acostumou com a situação, e o medo dela é a possibilidade de ver um corpo sendo arrumado: “Quando conto para alguém que eu trabalho na funerária, o pessoal se assusta, acha diferente e sombrio. É um serviço que eles acham que não precisam. Meu namorado não gosta que eu trabalhe com isso. A família dele não bebe nem o café servido em velório”.

Atenciosa e pouco habituada aos assuntos fúnebres, Suzana explica como funcionam os planos funerários. Os preços variam de R$ 420,00 a 3.900,00. O serviço inclui arrumação do corpo no caixão e flores. São mais de 30 modelos de urnas: com alça dura, móvel, urna com ou sem visor, com duas tampas, madeira lisa ou entalhada. Os detalhes são quase infinitos.

Suzana sabe pouco sobre a história da funerária onde trabalha. É quase meio dia e ela está sozinha na casa de esquina. Para confirmar alguns dados, liga para o gerente que está em Piracicaba, cidade onde surgiu o Grupo Bom Jesus.

O Grupo Bom Jesus existe desde 1969, mas se estabeleceu em Rio Claro em 1994. Existem quatro funerárias do grupo espalhadas por cidades da região: Piracicaba, Rio das Pedras, São Pedro e Rio Claro. Em Piracicaba, a estrutura é maior. Os clientes têm serviços de ambulância, aparelhos ortopédicos, assistência médica, odontológica e até cursos de inglês.

O telefone toca. Suzana atende. É o motorista da funerária. Ele avisa que o corpo de uma pessoa, que faleceu em Rio Claro, vai ser transportado para General Salgado. De uma cidade à outra, são cinco horas de viagem. O corpo transportado pertencia a José da Cunha Viana, que morreu aos 47 anos. No documento, que registra o óbito, está a descrição da morte: “Neoplasia gástrica, falência múltipla dos órgãos e caquexia neoplásica”.

Em Piracicaba, o Grupo Bom Jesus conta com o trabalho da assistente social Silvia Del Carmem. A chilena está na empresa desde 1997 e tem a tarefa de ajudar famílias que procuram ajuda. Em Rio Claro, a empresa não oferece apoio emocional aos associados.

A diferente estrutura entre os concorrentes funerários de Rio Claro chega a ser espantosa. Na recepção da empresa João de Campos, que está instalada na cidade há 70 anos, nada lembra a morte. É o avesso. A começar pelo nome de um produto exposto em panfletos dispostos no balcão: Plano Vida.

As funcionárias vestem uniformes. Os móveis combinam entre si na cor cinza e branca. As cadeiras são confortáveis. As recepcionistas são educadas, discretas e sorridentes. Tudo é informatizado, a tecnologia está presente em cada canto.

Em uma cidade com cerca de 170 mil habitantes, o número de associados da empresa João de Campos chega a 90 mil. Não é por acaso. O esforço do proprietário, que herdou a empresa do padrasto, é visível. Júlio César Reis pensa em todos os detalhes. Com seus 30 e poucos anos e rosto jovial, o ‘marqueteiro’ trabalha na empresa desde 1983, mas foi depois que o padrasto morreu que a funerária decolou.

O plano que representa 75% das vendas é o Plano Prata, que custa R$ 904,00. O associado da Funerária João de Campos paga uma determinada quantia por mês e tem direito a diversos benefícios, como desconto no convênio médico com a Unimed, a Uniodonto e empréstimo de equipamentos como cadeira de rodas e muletas. Os preços dos outros serviços variam de R$ 300,00 a 3.500,00.

Em um mês, são preparados cerca de 90 funerais. Reis cuida da parte publicitária, elabora os brindes como o Kit Docinho para as crianças e raspadinhas para os adultos. Com a raspadinha, os clientes ganham relógios e outros objetos: “São os detalhes e a motivação que fazem a diferença. Hoje as pessoas querem pagar as coisas e ter valor em vida. Enterro não é para o morto, enterro é para o vivo”.

Mesmo sem concorrência compatível, a preocupação é agregar valor. O produto da funerária João de Campos tem o efeito onda: “É como você ficar em casa enquanto acontece uma festa, daí você fica fora do contexto. O negócio é entrar na vida das pessoas e ir rodando com esse monte de coisas. O lucro vem da revenda. Não adianta montar toda essa estrutura se eu não entender que o negócio é lucro. A gente mora em um país capitalista, aqui não existe nada socialista”.
Como vender algo que ninguém quer comprar? Reis descobriu: “Preciso entender de gente. Eles compram e não levam nada, só uma lembrança. Eu invisto na lembrança. Se um cliente vem aqui e compra um pedaço de papel, ele paga por esse pedaço de papel durante anos e não leva nada. É complicado! Eu preciso acrescentar coisas em vida e não ficar explicando a urna, o carro que pega o corpo. Isso é como cd de música sertaneja. Pegou? Vende um milhão”.

Na área administrativa da funerária estão o cunhado, a irmã e a mãe de Reis, que no dia da entrevista estava em Chicago, nos Estados Unidos.
Durante a entrevista, a filha de Reis entra na sala correndo, pede doces e beija o pai. Ainda com o uniforme verde e branco da escola particular, a menina de cabelos claros tem um jeito amável. Ela se despede e fecha a porta com cuidado.

Com o olhar inebriante após receber o carinho da filha, Reis ensina que, na negociação dos planos, a urna só é vista “depois que o cliente pedir”. Se não fosse pela tradição do nome, seria impossível saber que a empresa é uma funerária. O proprietário e sua equipe de 20 funcionários organizam os funerais. Em relação aos sentimentos de dor e perda dos clientes: “Não há muito que fazer. Não temos assistente social porque têm aqueles falecimentos em que a família dá graças a Deus, enquanto outras não vêm nem buscar o documento. É muito difícil porque estarei entrando na vida particular do cliente. Como eu vou te consolar se você está preocupado se a casa vai ficar no seu nome ou não?”.

Para recolher os corpos, a empresa tem nove motoristas: “Hoje é mais fácil arrumar quem faça esse serviço por causa do desemprego. No setor funerário não existem cursos de formação. A experiência vai passando de profissional para profissional ou de amador para amador”. O que mais avança no setor são os cursos de preparação de cadáver: “Mas ainda é limitado porque o custo é alto. O Brasil é um país pobre e de classe média. Ricos? Minoria”.

Por mês, a Funerária João de Campos realiza três ou quatro funerais gratuitos para famílias mais pobres. O que existe na cidade é um rodízio entre as concorrentes. A cada semana, uma funerária fica responsável por cuidar de quem morre e não tem dinheiro.

As compras mensais que a empresa precisa fazer incluem doces, brindes e 100 urnas. Depois de explicar como funciona a venda dos produtos, Reis se encaminha para a sala de preparação de corpos, que fica longe da recepção. Novamente, computadores e tecnologia pelo caminho.

Interruptor. A luz ilumina a maca no centro da sala. Ao lado de Reis está o cunhado, José Luiz Modesti Jr., e a única responsável pela limpeza do local impecável, Jandira Almeida da Silva.

Modesti, que também é artista plástico, vai até a maca e puxa o lençol marrom. Susto. O corpo de Nercina Rodrigues Pereira, de contrato número 3030A, está estendido.

A expressão é de dor. A boca aberta, o corpo levemente retorcido, magro e nu. Nercina vai ser preparada para seu funeral, a urna está posicionada ao lado. Enquanto Jandira varre a sala, Modesti diz: “A falecida é tia da Jandira”. Ela afirma sorrindo que era sobrinha de primeiro grau de Nercina. Deixa-se fotografar ao lado do corpo. A situação começa a parecer natural.

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