quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo IX

Funexpo 2003

"Nada mais falso do que o medo de morrer, e eu diria que nós fazemos tudo para morrer o mais depressa possível. Os nossos hábitos, os nossos usos, os nossos vícios, as nossas irritações mal disfarçam a vontade, a urgência, a fome de morte."
Nelson Rodrigues

São Paulo, setembro de 2003, sábado às nove da manhã. Um ônibus lotado de pessoas bem vestidas sai de um hotel em direção ao Centro de Exposições Imigrantes.

Empresários e interessados no mercado funerário se reúnem e trocam cartões antes de chegar ao local onde acontece a Funexpo 2003. Logo na entrada da exposição, um guindaste sustenta um caixão gigante.

O movimento de visitantes aumenta a cada minuto. Muitos querem ser fotografados ao lado da maior urna do mundo. De madeira e alças douradas, pesa dois mil quilos, tem sete metros de comprimento, 2,40 metros de largura e um 1,80 metro de altura. São 4,5 mil metros quadrados de exposição funerária.

Antes de chegar perto da urna de sete metros de comprimento, algumas placas intercaladas na porta de entrada homenageavam escultores brasileiros e italianos. Quase ninguém parou para ver. As informações culturais ficaram ali paradas como as estátuas dos retratos.

Em uma das molduras estava a homenagem à campineira Nicolina Vaz de Assis, considerada a maior escultora brasileira. “Nicolina realizou uma obra cheia de formosura, transmitindo aos seus trabalhos a sentimentalidade e as delicadezas de sua alma de mulher”. Na foto, a escultura mostrava uma figura feminina em mármore com um 1,78 metro de altura existente no Cemitério da Consolação, quadra 36.

A Funexpo 2003 não trouxe lucro apenas para a economia funerária, mas também para alguns hotéis de São Paulo. Foram registradas 300 reservas hoteleiras ligadas diretamente à feira. Cada quarto ocupado movimentou, no mínimo, R$ 100,00. Amanda Blazzi é funcionária da agência Family Travel e foi contratada para ser uma das responsáveis pela organização do evento. Amanda fez reservas para pessoas de localidades como Pernambuco, Porto Alegre, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Argentina, Holanda, Chile, Bolívia, Colômbia, Itália e Venezuela.

Alessandra Torres também foi responsável pela organização hoteleira realizada pela empresa Family Travel, de Botucatu. Sem esconder a surpresa de estar pela primeira vez na Funexpo, conta que no início achou a idéia um pouco estranha e que os comentários ficaram por conta da família: “Ai credo, que macabro”.

Há cinco anos a Funexpo é a maior exposição funerária da América Latina e atrai novidades e empresários do Brasil e do mundo. Em 2003, 60 estandes, entre eles oito estrangeiros, foram montados no Centro de Exposições Imigrantes. O evento recebeu seis mil visitantes em três dias. Os negócios movimentaram R$ 4,5 milhões entre carros, urnas, paramentos, material de tanatopraxia, vestimentas, cartões personalizados, softwares de gerenciamento, transformação de veículos em carros funerários, material de convalescença que são muletas, cadeiras de rodas, colchões d’água e outros aparelhos. No Brasil, o mercado funerário movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano.

A Funexpo foi criada pelo Centro de Tecnologia e Administração Funerária (CTAF). Além de organizar as feiras bienais, o CTAF administra cursos, presta consultoria para funerárias em qualificação profissional e forma tanatopraxistas em todo país.

A tanatopraxia é uma técnica originada no Egito para a conservação de múmias e que está sendo difundida no Brasil há nove anos. Na feira, todos falam da tanatopraxia, que é a troca do sangue por um líquido que tem como base o formol. O líquido é aprisionado no sistema muscular e esse produto inibe o desenvolvimento das bactérias: “A família chega a se sentir orgulhosa pelo corpo estar bonito”.

O curso de tanatopraxia é ministrado em Campinas pelos professores de anatomia da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu, Oysenil José Tâmega e Progresso José Garcia. Eles trouxeram a técnica aperfeiçoada de embalsamamento dos Estados Unidos, Colômbia e Espanha. “Em Madri, a técnica da tanatopraxia é avançada”.

Em 2003 foram ministrados oito cursos com 16 alunos por turma. Em cada aula do curso são utilizados dois cadáveres e duas mesas: “Cada kit de tanatopraxia custa em média R$ 5 mil. Em dois dias, foram vendidos cerca de 10 conjuntos completos”.

A urna é o principal produto da feira, com novidades como urna para casal e urna que funciona por controle remoto. Os carros adaptáveis para transportar corpos são alvos de grande interesse, mas pode haver preconceito quando o setor escolhe um carro para usar seus serviços funerários, como aconteceu com a Caravan. Por isso, as montadoras disputam o espaço para adaptar seus veículos. Um deles é da marca Renault. Outra novidade que “vendeu que nem água” foi suporte de cabeça para cadáveres.

O lucro é certo, não há crise. Uma brincadeira, embora desgastada, ainda é citada pelos presentes e carrega sua mais natural verdade, afinal, “os clientes não voltam para reclamar”. O custo benefício da Funexpo é positivo. Para quem precisa negociar, a exposição é perfeita: “Todo mundo se vê aqui em três dias”.

Durante o ano todo, as cinco mil e quinhentas empresas funerárias no Brasil trabalham 24 horas por dia e o movimento econômico é expressivo, pois emprega mais de 100 mil trabalhadores.

O número respeitável de empresas no setor requer cursos de capacitação e a técnica mais requisitada para quem busca aperfeiçoamento é a tanatopraxia, que consiste na preparação adequada do corpo para o velório e que busca melhorar a alteração causada pela morte, como vazamentos, odores desagradáveis e coloração da pele. A técnica possibilita que um ritual seja estendido por mais de 24 horas e, em alguns casos, por mais de 20 dias.

No comando de toda estrutura e inovação está o presidente da Funexpo, da Associação Brasileira de Diretores e Empresas Funerárias (Abredif), vice-presidente da Associação Latino Americana de Parques e Cemitérios (Alpar), diretor executivo do CTAF e estudante de Direito, Lourival Panhozzi.

Ele explica que o aumento significativo do uso da tanatopraxia acontece devido à dispersão das famílias que, às vezes, moram em estados ou países diferentes. “O nascimento é um evento importante como o aniversário e o casamento, mas o derradeiro evento de uma família é a cerimônia fúnebre. É a que mais une, a que mais aproxima e a que mais torna todos iguais”.

Ao ter consciência da importância deste ritual, a empresa que trabalha com a tanatopraxia pode evitar a correria da família, que faz questão de estar presente. Por causa da pressa e do estado psicológico de um momento triste, há pessoas que sofrem acidentes graves nas estradas.

Um momento de dor pode se tornar uma tragédia. Para ilustrar, conto a história de um rapaz que não quis ser identificado. A vida dele conserva uma ferida que se estende por gerações. Quando era bebê, seu pai e todos seus tios foram velar um parente em uma cidade vizinha. As mulheres ficaram em casa cuidando das crianças. No caminho, o grupo sofreu um acidente de carro e ninguém sobreviveu. Depois de mais de 30 anos ele apenas pode constatar que, em sua família, todos os primos são órfãos de pai.

Com a tanatopraxia, o processo biológico de decomposição é adiado e o corpo fica com a aparência de alguém que está dormindo. Sem a técnica, o funeral deve durar menos de 24 horas, o que pode significar pouco tempo para comunicar a família e velar o corpo.

Para investir na qualidade, os profissionais podem fazer cursos de psicologia, atendimento ao cliente, relacionamento e controle de qualidade. Se antes a maior preocupação era com a morte, hoje as empresas cuidam da vida do cliente com diversos benefícios.

O fato é que conseguir a satisfação do cliente em um funeral é algo impossível. “Ninguém fica satisfeito de ter que ir a um funeral, a satisfação do nosso cliente é quando conseguimos amenizar um pouco a dor que é tão grande. Se você conseguir poupar um pouco aquela pessoa, você já conseguiu muito”. Enquanto Lourival explica como amenizar a insatisfação do cliente, as sirenes dos carros em exposição na Funexpo 2003 não param de fazer barulho.

O número de pessoas presentes aumenta, o Centro de Exposições lota, negócios são feitos a cada minuto, cartões são trocados, bebidas servidas. Em um dos estandes há cerveja à vontade e muitos homens com copos na mão. Parece uma grande festa. É quase hora do almoço, a praça de alimentação começa a exalar o cheiro de comida, duas crianças correm e brincam entre as urnas.

Mais negócios são fechados.

Entre tantos homens, encontra-se Taisa Berlingieri, psicóloga e filha do proprietário da Funerária Santa Isabel e do Sistema Prever. Ela ajuda a administrar a empresa de Jaboticabal, que era do avô. Em breve, pretende implantar a Psicologia do Luto, que é o apoio emocional à família associada: “Acho que falta um grupo de orientação para mães que perderam filhos e crianças que perderam pais. Seria interessante oferecer mais um benefício ao associado”.

Após um enterro, o cliente da Funerária Santa Isabel conta com um profissional para cuidar da documentação e encaminhar as roupas e remédios de quem faleceu para asilos e instituições de caridade. Todos os rituais preparados pela Santa Isabel usam a técnica da tanatopraxia. Os planos podem custar de R$ 250,00 a 6 mil. Existem profissionais aptos a acompanhar a família “inclusive com medidor de pressão arterial”.

Em Jaboticabal residem cerca de 70 mil pessoas e o número de associados da Santa Isabel é de 70 mil. A empresa não tem concorrente na cidade e o número elevado de associados tem uma explicação: a funerária presta serviço para toda a região de Jaboticabal.

De pai para filho, dificilmente uma funerária é administrada por funcionários. Na Funexpo 2003 houve um encontro inédito entre os jovens que, em breve, vão assumir o comando de empresas. Taisa acredita que esta foi a melhor maneira encontrada pelos empresários de apresentar o mundo dos negócios funerários para filhos e filhas. “A reunião dos sucessores tem o objetivo de discutir as dificuldades de assumir uma empresa onde praticamente crescemos. É difícil, de repente, sair do papel de filho do dono que corre pela empresa e brinca com os funcionários para o papel de administrador que cuida do negócio, dá ordens e faz mudanças na empresa. É muito bom quando temos a oportunidade, como eu estou tendo, de assumir juntamente com meu pai. Muitos outros jovens tiveram que assumir a empresa no susto, de uma hora para outra, por causa da morte dos pais. Aí sim é difícil, porque tem que aprender tudo sozinho”.

Mário Fernando Berlingieri é pai de Taisa e, aos 54 anos de idade, ele é vice-presidente da Abredif, diretor do CTAF, do orfanato Lar do Caminho, proprietário da Funerária Santa Isabel e do Sistema Prever, formado em Ciências Sociais e Direito. Desde criança convive com urnas e corpos. Com fluência verbal e raciocínio lógico, fala dos planos de elaborar um manual funerário que resgate a história do setor e que compartilhe as situações em que são obrigados a resolver problemas complexos, como no caso de transporte aéreo e leis pouco objetivas.

Dentro da funerária Santa Isabel existe uma sala de cirurgia para a retirada e doação de córneas. Berlingieri interfere junto à família de forma didática para garantir a doação: “Queremos envolver os diretores funerários do Brasil inteiro nesses projetos de doação de órgãos, pois nós somos as pessoas mais próximas nesse momento tão difícil”.

A córnea é retirada na funerária porque é a única parte do corpo que pode ser utilizada depois do óbito. No local dos olhos verdadeiros são colocados olhos de plástico com a finalidade de não trazer para a família qualquer tipo de constrangimento. “Não é porque estamos mexendo com um corpo sem vida que tem que haver desrespeito. Aquele corpo amou, foi amado, transitou pela terra, gerou filhos, produziu. Temos respeitar, mesmo que este corpo esteja retornando para o laboratório da natureza”.

Depois da conversa esclarecedora sobre administração funerária, entrevisto Jonacir Amorin. Ele é um dos maiores fabricantes de urnas do estado de São Paulo. A Faurtil, localizada em Tietê, está há 49 anos no ramo e emprega 50 pessoas. Amorim sabe que os donos das funerárias são exigentes, então buscou aperfeiçoamento profissional pelo mundo.

Sem saber falar inglês, Amorin e seu maior concorrente, Marcos Bignotto, viajaram juntos para os Estados Unidos em busca de novas informações: “Nos Estados Unidos andamos seis mil quilômetros de carro para fazer pesquisa de mercado. Levamos um intérprete. Participei de feiras em Portugal e vi que lá eles respeitam mais a morte. O brasileiro não aceita, é muito emocional”.

Em Portugal as urnas não têm alça e, a caminho do enterro, são carregadas nos ombros. Amorim conta que um metro cúbico de madeira permite a fabricação de quatorze urnas. Ele é um dos poucos fabricantes brasileiros que exporta seus produtos. Há seis meses, a Faurtil vende caixões para a Itália, França e Alemanha. Vender para os Estados Unidos é difícil porque eles fazem exigências que comprometem a estrutura de uma fábrica. Os norte-americanos são enterrados em urnas quadradas, enquanto os brasileiros utilizam as arredondadas. Com quatro filhos, apenas os meninos começaram a assumir a empresa do pai: “Eu acho que é um ramo para homens”.

Mesmo em um mundo dominado pelos homens, Edna Porto Viola é uma das poucas empresárias na feira; ela começou a trabalhar no ramo há oito anos. A empresa Modial era dela e do marido, mas ele resolveu entregá-la para a esposa administrar e abriu outro negócio também no setor funerário.

A Modial vende dois mil produtos por mês entre vestes fúnebres, caixas para ossos, acessórios para veículos, véus e sedas.

Bem vestida, Edna atende os clientes em seu estande e quase não pode parar para a entrevista. É interrompida o tempo todo por pessoas que querem negociar e comprar seus produtos. Alguns metros depois da Modial está Valdemar Bresciani. Ele começou a trabalhar como fabricante de urnas por acaso. Mesmo contrariando a realidade das empresas familiares, Bresciani conseguiu projetar sua empresa no cenário funerário com rapidez.

Quando era empreiteiro, ele fez um conjunto habitacional a pedido da prefeitura de uma cidade em Santa Catarina, mas ficou sem receber o pagamento durante cinco meses. Para negociar a dívida, o ex-prefeito, Dorvalino Dacorregio, doou um terreno para Bresciani e o ajudou a construir uma fábrica: “O prefeito trouxe até a mão de obra porque eu não entendia nada de urna”. Hoje, Bresciani administra uma empresa, tem 85 funcionários e vende duas mil urnas por mês. Há três anos no mercado, os caixões fabricados pela fábrica Irmãos Bresciani são fornecidos para estados como Mato Grosso, Alagoas e Minas Gerais. A Santa Casa do Rio de Janeiro é cliente da fábrica de Bresciani, e as urnas são usadas nas gravações de funerais de novelas da Rede Globo. O corpo de Roberto Marinho foi enterrado em um caixão feito pela fábrica Bresciani: “A urna do Roberto Marinho não é o modelo mais caro. Custou R$ 950,00. Não sei o preço que a funerária cobrou pelo serviço todo. Geralmente o preço é cinco a 10 vezes mais caro que a urna”.

Em um funeral, o custo não fica por conta apenas da urna, mas do serviço completo: arrumação do corpo, flores, paramentos e preparação burocrática dos papéis referentes ao óbito.

Os donos de funerárias precisam entender de cadáveres, mas os fabricantes de urnas não. Marcos Bignotto é proprietário da maior fabricante de caixões da América Latina. A empresa tem 36 mil metros quadrados de construção. No início, Bignotto não gostava da idéia de trabalhar com fabricação e venda de urnas, mas assumiu o negócio por questão de honra. “Se os outros podiam fazer bem feito, eu seria mais um”.

Obstinado, ele fez da fábrica localizada em Cordeirópolis, no interior do estado de São Paulo, uma empresa de sucesso que emprega 350 pessoas. A cada oito horas de trabalho, são feitas mil urnas. No total, fabrica 20 mil caixões por mês: “Vendo todos”. Há 35 anos Bignotto herdou a tarefa do pai.

Atualmente, ele prepara a filha mais velha, de 19 anos, para assumir seu lugar. “Tenho três filhas e um filho. A mais velha está na faculdade de economia e mostra interesse pela administração da fábrica”.

A entrevista acontece na praça de alimentação do Centro de Exposições Imigrantes. São cinco horas da tarde do dia 06 de setembro de 2003. Com lágrimas nos olhos, Bignotto pede café e água e diz: “As histórias chocam, mas as pessoas sobrevivem ao choque”.

A dor está na lembrança da morte do pai, que faleceu há cerca de três anos enquanto trabalhava dentro da fábrica. Para explicar os sentimentos de saudade e a necessidade de aceitar a morte, Bignotto cita a dor de uma mãe que perdeu seu filho na explosão do Veículo Lançador de Satélites (VLS) que matou 21 pessoas no Maranhão em agosto de 2003. Bignotto é amigo da família de Mário Freitas Levy, que estava entre as vítimas.

Aos 73 anos de idade, a mãe de Mário, Margarida Freitas Levy, precisou passar pelo desgaste emocional de perder um filho com 43 anos. Para amenizar a própria dor, ela disse para Bignotto: “Se outras mães podem suportar, eu também posso”.

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