quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo IV

Notícia ruim


"Fui até o rapaz que ainda vivia. E vendo ele morrer, sem saber o que fazer, segurei sua mão fria" Um ponto oito - John Ulhoa


Na noite de 20 de maio de 1994, Jyl sofreu politraumatismo no acidente que envolveu um ônibus e um caminhão-tanque. Ele foi uma das únicas vítimas fatais a sair inteira do acidente. Uma caminhonete, que passava pelo local, o socorreu antes da chegada qualquer resgate especializado.

Enquanto tentavam salvar a vida de Jyl na Santa Casa de Rio Claro, o jornalista Ivan Castanho se preparava para ir a um jantar árabe no clube da cidade, o Grupo Ginástico. Ele estava em casa quando recebeu uma ligação com a notícia do acidente na SP-127.

Em 1994, celular era objeto raro. Castanho saiu de casa em direção ao clube. Um colega de trabalho foi até a festa avisá-lo pessoalmente: “Teve um acidente grave com estudante. Coisa grave. Vários mortos”.

Na entrada do clube, Castanho estava com a esposa e mais um casal, na época o dono do Jornal de Rio Claro, João Ragghiante. Castanho deixou os três na festa e foi para o local do acidente: “O jornalismo corre na veia. Já tinha a informação de que era ônibus de estudante de Rio Claro. Fui na louca, sozinho. Cheguei no jornal e o fotógrafo já tinha ido cobrir o fato. Foi difícil chegar até o local da tragédia. Estava tudo congestionado e escuro. Deixei o carro distante uns 500 metros do acidente. Com carro particular é complicado, se é de imprensa o pessoal abre caminho, mas até justificar...”.

Enquanto caminhava, ao chegar perto do acidente, Castanho sentiu “um negócio grudando no pé”. Ele não sabia o que era e quando viu, era piche: “Marcou muito porque eu estava de sapato novo. Na hora, a única coisa que veio na cabeça foi o sapato novo. Depois disso, quando cheguei perto do ônibus, foi um horror”.

Não era a primeira vez que Castanho via uma tragédia de perto. Cerca de dois anos antes do acidente que matou Jyl e mais 18 pessoas, o jornalista cobriu um acidente com sete vítimas fatais na SP-127: “Cheguei junto com o resgate. Morreu a família inteira, só não morreu o motorista do caminhão. Os sete eram da família Vedovelo. Tinha criança dentro do carro. Estavam indo para um casamento em Piracicaba ou Capivari, não lembro mais. No caminho para a festa, bateram de frente com um caminhão. Não dava para distinguir do que estavam vestidos. Para você ter um idéia, eram sete corpos. Não sei você já viu o tamanho do caixão de zinco que funerária tem para esse tipo de coisa, que é um pouco maior e mais alto do que a gente costuma ver em velório. Os sete corpos couberam em um único caixão. Não tinha como distinguir, era preciso levar para um especialista tentar fazer a separação”.

Depois do resgate dos corpos, quando levantaram o veículo acidentado, acharam uma cabeça embaixo do carro: “Até onde sei, o problema foi com a mecânica do carro, não foi culpa do caminhão. O caminhão vinha na descida, o carro não estava ultrapassando e não deu para identificar o problema por causa do estado em que o veículo ficou. Ou foi a direção, ou furou o pneu. Você imagina um caminhão no embalo da descida...”.

Já no acidente de 20 e maio de 1994, Castanho encontrou o fotógrafo do Jornal de Rio Claro trabalhando na escuridão. Entre os corpos, o jornalista conta que o interessante era o cheiro: “O cheiro não era ruim, mas dava para sentir o cheiro da morte ali, não dá para explicar. Fiquei arrepiado de ver aquilo. Eu, na realidade, não conhecia ninguém. Só sabia que eram estudantes. Apenas uma sobrevivente eu conhecia de vista”.

O fato de não conhecer as vítimas facilita o trabalho de qualquer profissional, mas Castanho não deixou de ficar sensibilizado com a situação: “A cena chocante foi quando eu me dirigi ao Instituto Médico Legal (IML). Não tinha mais espaço para colocar os corpos. Foram colocados no chão, um ao lado do outro. Ali foram feitos os reconhecimentos e as fotos. Publicar ou não? Tinha gente com metade do rosto, sem o queixo, sem a tampa da cabeça, sem o braço, sem a perna, gente cortada o meio. Tinha de tudo. Interessante foi o silêncio no IML. Apesar dos familiares chegarem, havia silêncio e daí a pouco alguém começava a chorar”.

Depois do IML, Castanho seguiu para a redação do Jornal de Rio Claro, onde trabalhou durante quase 20 anos. Foi revelar as fotos e escrever a matéria: “Era tipografia, tinha que montar no chumbo. Passava para o linotipista. E o jornal saiu... mais uma tragédia”.

Escrita a matéria, Castanho voltou para o Grupo Ginástico, onde acontecia o jantar árabe: “Minha esposa estava lá, devia ser mais de meia-noite”. O pessoal já começava a ir embora do clube. Por coincidência, a primeira pessoa que o jornalista encontrou foi Ragghiante, dono do Jornal de Rio Claro, conversando com o Aldo Demarchi, na época vice-prefeito da cidade: “O Aldo perguntou para mim como tinha sido e eu disse que era indescritível”.

No dia seguinte, Castanho buscou, com as famílias, as fotos das vítimas fatais para publicação no Jornal de Rio Claro. Das 19 vítimas, ele conseguiu 10 fotos: “Só nós do Jornal de Rio Claro íamos publicar, aí o repórter do Jornal Cidade me ligou e pediu as fotos. Depois, muita gente me questionou por eu ter cedido o material para o Jornal Cidade ao invés de publicar sozinho. Por que eu cedi? Primeiro, naquele momento eu tinha consciência de que o Jornal de Rio Claro não era o de maior circulação. A impressão do Jornal Cidade naquela época já era off set, então não achei justo colocar o material só no jornal que eu trabalhava. Muita gente não sabia quem tinha morrido. Quase todos eram de Rio Claro. Eu achava que, quanto mais a imprensa divulgasse quem eram as pessoas, mais informação. Não era sensacionalismo, era informação”.

Na vida pessoal, Castanho às vezes freqüenta a Congregação Cristã do Brasil. A esposa dele é batizada, mas ele não: “Vou lá para ouvir uma palavra e tal. Acredito em Deus, ou em uma força que colocaram o nome de Deus. Acredito nessa força e quero continuar acreditando. Eu acho que estamos aqui por algum motivo. Temos que acreditar. Tudo na vida precisa ter um objetivo. Não que a morte seja o objetivo, mas é o destino e temos que aceitar. Temos que ter uma vida sem fazer mal às pessoas. Ninguém é perfeito, todo mundo tem seus pecados, mas é preciso tentar ser o mais honesto consigo mesmo. É importante a pessoa ter uma crença, uma doutrina. Até o ateu tem a doutrina de que ele é ateu, não simplesmente vive por viver. Eu não posso matar, roubar, não é certo... Se eu tenho medo da morte? Eu não tenho medo da morte, eu tenho pavor”.

O jornalista Diógenes Pasqualini é assessor de imprensa do deputado estadual Aldo Demarchi juntamente com Ivan Castanho. Em 1994, Pasqualini era estudante de jornalismo na Unimep e repórter do Jornal de Rio Claro.

Todos os dias, cerca de nove ônibus da Companhia Cidade Azul saíam em direção à Unimep. O ônibus de Pasqualini foi um dos três primeiros que seguiram para Piracicaba. O veículo em que Jyl estava era o quarto ônibus: “Era uma sexta-feira, dia 20 de maio, e a maioria dos ônibus estava com menos alunos que o habitual. Você sabe, sexta-feira, moçada jovem, cerveja esperando no bar. A maioria enforcava aula. Isso justifica o número de mortos. Se o carro estivesse lotado, com 51 passageiros, a tragédia poderia ter sido bem maior. No dia, creio que o número de pessoas no ônibus não passava de 30”.

Na Universidade, Pasqualini cumpria apenas um crédito. Era final de curso e o professor solicitou que a classe fizesse uma redação. Tema livre, um texto de 20 linhas, batido a máquina em lauda padrão de jornal: “Lembro-me que, no momento em que recebi a notícia do acidente, eu escrevia algo sobre a morte. É curioso notar que, quando um amigo meu disse ‘cara, aconteceu um acidente com um dos ônibus da Viação Cidade Azul’, nesse momento eu escrevia exatamente ‘Ela foi embora e morreu...’. Não me lembro do conteúdo, mas essa frase me incomodou por muitos anos. Seria um pressentimento? Uma intuição?”.

A esposa de Pasqualini, na época noiva, viajava em um dos nove ônibus também. Ele estudava no campus Centro e ela no campus Taquaral: “Para quem não conhece a estrutura física da Unimep, estávamos distante um do outro uns oito quilômetros”.
Depois da notícia inicial, saíram todos em busca de informações: “Tentamos por telefone, mas as ligações eram tantas que acabou congestionando as linhas. A angústia e o medo de que minha noiva estivesse no ônibus envolvido no acidente crescia e o coração estava mais apertado, o peito doendo e já batia a vontade de chorar. Nessas horas a gente tenta manter a calma. Começa a afirmar interiormente que, ‘não, ela não estava naquele carro’. Mas o tempo passando e a falta de informação acabam com qualquer pensamento positivo. O nervosismo começa a dominar as emoções e os atos. Mãos frias, suor, lábios brancos, coração acelerado. Os amigos começam a chegar perto, a olhar com pena, a abraçar, tentam confortar. Nesse momento, creio que oito horas da noite, todos os estudantes do campus Centro já procuravam apoiar os alunos de Rio Claro”.

Um amigo de Pasqualini teve uma idéia que piorou a situação de nervosismo. Eles foram para o laboratório de rádio da Universidade, onde havia um sistema potente de recepção: “Podíamos ter informações das emissoras de Rio Claro. As notícias eram desencontradas e a cada flash, o número de mortos aumentava. Um amigo nosso, repórter de uma emissora, chegou a citar e tentar adivinhar que ele tinha amigos que viajam naquele ônibus e um deles seria eu. Gelei ao ouvir esta informação. Lembrei-me de minha mãe, meu pai e meus irmãos. Precisava dar a notícia de que estava bem. As linhas continuavam congestionadas. Saí pelas ruas e achei um telefone público. Finalmente consegui falar com minha mãe. Talvez depois de meu nascimento essa tenha sido a maior alegria que dei a ela ao me ouvir dizer apenas: ‘mãe, estou bem!’. O grito de felicidade dela foi tão alto que senti como se estivesse ao meu lado. Depois disso, desabei e chorei muito ao telefone”.

Depois de avisar a mãe, mesmo sem saber da noiva, Pasqualini ligou para a futura sogra e avisou que a filha dela estava bem. Apesar de tranqüilizar a sogra, Pasqualini ainda não tinha notícias. Ele disse que todos estavam bem sem ter a informação verdadeira. Mais tarde Pasqualini soube que a noiva não estava no ônibus acidentado, mas o primo dela, Nilson Cazonatto, sim. Cazonatto foi uma das vítimas fatais.
Pasqualini reencontrou a noiva no campus Centro da Unimep depois de uns 40 minutos e foram embora: “No caminho de volta havia tristeza e a tentativa de entender o acidente sem saber a dimensão da tragédia e o número de vítimas, entre mortos e feridos. Ao passar pelo local da batida, ninguém teve a coragem de olhar pela janela do ônibus. O medo era de ver corpos dilacerados pelo chão”.

Enquanto isso, na Santa Casa de Rio Claro, um médico alertou a família Pessoa de que não havia recursos suficientes para dar suporte ao estado grave de saúde em que Jyl estava. Seria preciso conseguir ajuda fora dali. Simone correu para o Grupo Ginástico. Ela sabia que, no clube onde acontecia um jantar árabe naquela noite de sexta-feira, seria possível encontrar pessoas que tinham condições de levar seu irmão de helicóptero até Campinas. Feitos os contatos, o médico de Campinas ligou para a Santa Casa de Rio Claro com o objetivo de checar o estado de saúde de Jyl. Ele havia falecido naquele instante.

Simone voltou para a Santa Casa. Todos queriam poupar Constância da notícia, mas foi inevitável. Para cada falecimento causado pelo acidente, o nome da vítima era anunciado pelo auto-falante do hospital. Foi assim que Constância soube.

Qual o sentimento de uma mãe ao saber, pelo autofalante de um hospital, que seu filho acabou de morrer? Não é o vôo que vai sair do aeroporto, nem alguém procurando por você no shopping. É seu filho que não existe mais de uma hora para outra. Para evitar essas e outras situações semelhantes, alguns cursos de medicina buscam, mesmo que timidamente, a humanização do médico.

Há três anos a Unicamp ensina seus alunos e futuros médicos a tratarem não só da doença, mas da pessoa por trás da patologia.

Quando a morte é motivada por desastres e acidentes, os profissionais sabem que é preciso ter cautela para comunicar a notícia. Venâncio Pereira Dantas Filho é neurocirugião do Hospital das Clínicas na Unicamp e conhece a dificuldade de explicar o óbito para uma família que acabou de perder alguém. O médico, além informar a notícia ruim, tem que lidar com as diferentes reações.

A culpa é um dos sentimentos mais presentes nas famílias que constatam a morte de um ente enfermo. O caso mais freqüente é a averiguação do óbito de um idoso que ficou à mercê do tempo e da pouca vontade dos filhos e netos. Outro exemplo é o de pais que dão de presente ao filho uma moto, veículo campeão em estatísticas de morte no trânsito. Mais do que a culpa, há religiões que não permitem a transfusão de sangue ou o corte de cabelo para cirurgias na cabeça.

Como a maioria dos profissionais da saúde, Venâncio acredita que a maior dificuldade está em lidar com os pais dos pacientes mais jovens. Depois que teve seus dois filhos, hoje com 12 e nove anos, o médico passou a sentir um peso emocional maior em cirurgias que envolvem crianças: “O ser humano enxerga a morte de três maneiras diferentes. Na infância, tudo é mágica. É quando um caminhão atropela um animal e nada de ruim acontece, como nos desenhos animados. Ao se tornar um jovem, a visão da morte é heróica. A pessoa mais nova quer dominar o que não pode ser dominado. As maneiras de concretizar este tipo de sentimento são os esportes radicais e os brinquedos nos parques de diversão. Ao envelhecer, o adulto percebe que é inevitável lutar contra o que é certeiro. Nesta fase o ser humano negocia com a morte. Melhora a alimentação, pára de fumar, de beber, faz exercícios, tratamentos e o que mais tiver ao alcance para prolongar a vida”.

Com o avanço da medicina, os profissionais trabalham focados no tecnicismo, mas são requisitados para responder a numerosos temas que fogem da tecnologia aprendida na faculdade e em cursos de especialização. Dentro dos hospitais é necessário conviver com conflitos familiares, religiosos, dificuldades sexuais, angústias existenciais e uma infinidade de detalhes que envolvem não só uma patologia, mas um paciente e uma família por trás dela.

Ao analisar o caso de Constância Pessoa, que soube da morte do filho pelo auto-falante da Santa Casa de Rio Claro, Venâncio enxerga este procedimento como algo desaconselhável, pois fere e desrespeita a dor do outro. O mais apropriado seria conversar com a família em um local mais reservado. É preciso preparar a família para a notícia fatal.

Adquirir maturidade profissional na área da saúde pode levar tempo. Venâncio busca ajuda na religiosidade. Ele necessita da fé para encontrar um significado e entende que a morte não é um erro da medicina, mas o destino natural da vida. Querer salvar uma pessoa a qualquer custo nem sempre parece ser o melhor. Nas tentativas desesperadas de deixar alguém vivo, a situação pode provocar mais dor tanto para o paciente quanto para a família.

Com esta consciência, Venâncio sabe que não é fácil chegar a uma conclusão, principalmente quando a família solicita “que seja feito tudo o que for possível”. Para discutir questões como esta, foi formada uma Comissão de Racionalização de Tratamento em Pacientes Fora de Possibilidade de Tratamento, um grupo de cerca de sete médicos da Unicamp que procuram encontrar soluções para a prática da distanásia, que é o prolongamento do sofrimento de um paciente terminal.

Dentro da Unicamp, Venâncio é assessor da Central de Captação de Órgãos (CCO) e professor da disciplina de Temas Longitudinais de Bioética. A disciplina está em prática na Faculdade de Medicina da Unicamp há três anos e busca a humanização do médico, o respeito pelas religiões e a consciência de que, muitas vezes, o profissional da saúde vive um tecnicismo tão intenso que esquece de resgatar o lado humano e a linguagem na atuação dentro dos consultórios e hospitais.

Durante as aulas desta disciplina, alguns líderes religiosos são convidados para explicar o que é a vida e a morte segundo a doutrina adotada por diferentes grupos sociais. Os estudantes de medicina já assistiram às palestras sobre a crença dos católicos, espíritas, afro-brasileiros, evangélicos e muçulmanos. É conveniente explicar a vida para depois entender o conceito do óbito. Se nos anos 60 o grande tabu era o sexo, hoje este tabu foi transferido para a morte.

Quando os exames de laboratório apontam que alguém é portador de uma doença terminal, o comunicado do diagnóstico é missão do médico. Ao saber que a própria vida chegou ao fim, o portador da chaga fatal costuma passar por cinco fases emocionais. A descrição detalhada de cada uma delas pode ser encontrada em livros como “O que é a morte”, de José Luiz de Souza Maranhão.

Fases do moribundo
A primeira fase é a da negação. A maioria dos pacientes pergunta “Por que eu?”. A inabilidade de alguns médicos pode comprometer a reação dos pacientes e familiares. Há casos em que eles despejam o diagnóstico de modo rude para que depois a equipe de enfermagem lide com a dor emocional diária do paciente ainda chocado pela notícia de que vai morrer em breve.

Com o doente negando a proximidade do próprio fim, a equipe médica tende a se sentir confortável, pois não necessita se envolver emocionalmente enquanto o paciente tenta se convencer de que não está doente e de que não vai morrer. Existem também muitas famílias de moribundos que se fixam na fase da negação e todos fazem de conta que a morte não existe.

Com o passar dos dias, a realidade e os sintomas não escondem a doença e o paciente pode passar para a segunda fase, que é a da cólera.

Neste período ele sente uma intensa revolta e dirige sua raiva para o médico, o enfermeiro, os visitantes ou até mesmo para a comida do hospital. O sofrimento interno é causado porque o moribundo sabe que vai morrer e as outras pessoas vão ficar vivas.

O psicólogo e coordenador da Rede Nacional de Tanatologia, Aroldo Escudeiro, tratou de uma paciente com câncer. A moça tinha uma filha e um marido, mas este homem a trocou por outra.

Ela ficou com a filha que ainda era bebê, mas o câncer chegou rapidamente. A maior angústia da mãe moribunda foi constatar que a nova mulher do marido lhe roubou tudo. Ela não se queixava porque estava morrendo, mas porque o marido estava vivo juntamente com outra mulher, e o novo casal estava pronto para cuidar de sua filha. Com o acompanhamento do psicólogo Aroldo Escudeiro, a paciente pôde entender e aceitar a própria morte.

A terceira fase de um doente terminal é a da barganha. No estágio da barganha, o paciente tenta negociar com Deus ou consigo mesmo. Promete, faz pactos, insiste: “Se eu me curar, farei isto ou aquilo”. A barganha feita com a morte pode ser observada no filme sueco O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. Na obra, um cavaleiro joga xadrez com a morte, tentando adiar seu final em uma terra onde a peste castiga sem piedade. “Todo esse processo não resultaria tão traumático e doloroso se as pessoas, mesmo antes do surgimento de um caso de morte na família, conversassem sobre a morte e o morrer como sendo um fato constitutivo da própria vida e do viver”, explica Souza Maranhão, autor do livro “O que é a morte”.

Passada a fase da barganha, surge a depressão. O paciente se conscientiza de que a vida acabou, entra em um estado de silêncio interior e apenas demonstra interesse pelas pessoas mais próximas.

O último e mais difícil estágio a ser alcançado é o da aceitação. Mesmo que o moribundo tenha concebido a própria morte, a família tende a não aceitar e prejudica a manifestação de um sentimento que deveria ser natural.

Não é regra que todos os moribundos passam pelas cinco fases exatamente nesta ordem. Alguns jamais aceitam que vão deixar de existir. A enfermeira Carla Fiori define deste modo: “O momento da morte é um momento solitário, mas muita gente tem medo e disfarça até o último momento. A pessoa finge que ela não está vendo a própria morte. Muita gente faz isso, acho que é maioria”. A atitude pode ser entendida no senso comum de que a esperança é a última que morre, mas segundo Carla: “A esperança é a última que se enterra”.

Ao perceber que um moribundo está prestes morrer, a equipe de enfermagem evita manipular a pessoa, mas tenta ficar próxima e “pegar na mão”. Não é o mesmo que ter um familiar ao lado, mas há os enfermeiros que procuram amenizar este momento naturalmente solitário. Quando o paciente morre, o procedimento é esconder o rosto de quem faleceu para que os outros pacientes do hospital não percebam.

Souza Maranhão detalha a situação: “Quando é possível prever a morte de um paciente em uma enfermaria, ele é deslocado para um quarto privativo. Tudo se passa como se não existissem moribundos no hospital”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Profundo, humano e sensível este texto. Ajudou-me a entender melhor a necessidade, cada vez maior, de humanizarmos a melhor a morte e o morrer e, portanto, a vida e o viver. O livro O que é morte (José Luiz Maranhão) deveria ser de leitura obrigatório nos cursos da área de saúde.
Sandra Hoffmann