quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo III

Um Nove Dois


"Meu anjo, eu sei que é duro esperar, no chão, tudo terminar. Pois, continuar vivo já não é mais uma opção. Fácil é virar pó, difícil é a lição"
Morto - John Ulhoa


Sexta-feira era dia de fazer faxina na casa, mas naquela tarde Simone estava enrolada com o serviço. Omero, irmão mais novo de Jyl, costumava contar piadas diariamente antes de ir para a escola.

Jyl, já pronto para pegar o ônibus que o levaria para a faculdade, começou a fazer graça. Eles adoravam rir. Um pouco antes de Jyl sair de casa, Constância pediu para o filho tirar o tênis. Ela lavaria o calçado para que ele pudesse usá-lo limpo no final de semana.

Foi então que Jyl respondeu: “Xi mãe, você vai ver como vai voltar esse tênis hoje”. Passou por Simone e se despediu rapidamente: “Ele saiu quase sem ninguém ver, eu disse para ele: ‘vai com Deus’, e ele foi”.

Logo depois que Omero e Jyl saíram, Simone e Constância foram à igreja rezar o terço. Entre sete e sete e meia da noite, na “Hora dos Mistérios”, Simone passou mal, perdeu o fôlego e “a vista escureceu”. Constância apenas sentiu necessidade de rezar sem parar. Em alguns minutos, Simone estava bem novamente.

Depois de rezar, mãe e filha vão para casa preparar o jantar. É nesta situação que Fábio aparece. O sócio de Jyl trazia a notícia: “Aconteceu um acidente com o ônibus do Odajyl e parece que ele está bem na Santa Casa, vamos lá que eu levo vocês”.

No caminho para o hospital, Simone acredita que o irmão vai sobreviver. Com a confusão, foi difícil entrar no hospital, mas Simone consegue. Desce as escadarias e vê Jyl passando deitado na maca. Ele estava respirando, mas inconsciente. Não tinha piche no corpo dele. As outras vítimas do acidente se misturaram no material asfáltico do caminhão-tanque que bateu no ônibus. Jyl estava inteiro, com o peito inchado, a cabeça raspada e cheia de cortes.

Ver o irmão em estado grave depois de sofrer um acidente é uma lembrança sem possibilidade de descrição. Por mais que haja maneiras de dizer como foi, apenas quem viveu uma situação semelhante pode saber o real significado da dor. É em momentos como esse que muitos profissionais precisam lidar com o sofrimento alheio diariamente.

São irmãos, pais e mães de pessoas desconhecidas que precisam de ajuda. A tarefa? Salvar vidas e amenizar dores. É assim que trabalham todos os dias os médicos, enfermeiros e motoristas do Sistema de Atendimento Médico de Urgência de Campinas (Samu).

Sala pequena, móveis antigos, médicos, enfermeiros, atendentes, ocorrências paradas por falta de ambulância e um homem tentando consertar algo a marretadas. Assim estava a sala de atendimento 192 do Samu em uma tarde de agosto de 2003.

Os atendentes recebem os telefonemas, coletam as informações necessárias como endereço, gravidade da ocorrência e, dependendo do caso, acionam uma equipe para sair com a ambulância UTI.

As constantes chamadas podem trazer notícias como parada cardíaca, ferimento por arma de fogo, arma branca, acidentes múltiplos ou desabamentos. Durante o dia, quatro médicos ficam de plantão, à noite são três.

O Samu recebe 150 chamadas diariamente: são pessoas que pedem por socorro. Das 11 ambulâncias disponíveis no serviço, cinco estão paradas. As ocorrências não atendidas se acumulam em cima da mesa que fica ao lado de um computador. Cada uma delas é separada de acordo com uma classificação pré-estabelecida, o maior maço de papéis à espera de atendimento aponta casos de alcoolismo.

O primeiro a ser entrevistado na tarde ensolarada de agosto foi o coordenador médico José Roberto Hansen. O homem, que hoje trabalha na administração do Samu, explica que o dia-a-dia de atender urgência e emergência é mais emocionante. Com a missão de socorrer pessoas há mais de 13 anos, Hansen sabe que, por conta de alguns segundos, uma vida pode se perder.

Nas emergências, a atenção e a pressa precisam ser constantes. Das tantas histórias vividas pelo médico, que se formou no Rio de Janeiro, a mais presente na memória é a de uma criança que caiu em um poço: “Eu tive que entrar dentro do buraco sem esperar bombeiro porque não dava tempo. Nós temos treinamento para resgate em altura e resgate em poço. Desci e peguei a criança no poço de uns 15 metros, ela quebrou só a clavícula e luxou o ombro”.

Em casos de óbito, Hansen fica emocionado quando a vítima é semelhante a alguém que ele conhece: “Deparar-se com uma situação de um falecido que parece um parente seu, um senhor que parece seu pai, isso é difícil. Eu morava no Rio de Janeiro e, quando isso acontecia, eu ligava em casa para perguntar: ‘E aí pai, tudo bem com você? E a semana, foi boa? Não está sentindo nada?’ Dava muito medo de acontecer com a minha família também”.

Nas situações delicadas em que um médico precisa se aproximar da família de uma vítima, a atitude varia de profissional para profissional. Alguns fazem uma prece para que todos possam se acalmar, outros explicam o que aconteceu, e existem aqueles que não fazem nada.

Hansen busca esclarecer os familiares: “Explico qual o motivo da morte e a chance de ter feito algo. Tento acalmar a família”. Para ele, acidentes na rua são emocionalmente mais fáceis de lidar pois, na maioria dos casos, a família não está presente: “Quando é trauma, a situação é ruim porque você vê um corpo dilacerado na pista, isso choca. Você sabe que há minutos era uma pessoa que tentava ir para casa, dar comida para os filhos. Daí a pouco você vê o corpo da pessoa destroçado em uma pista. Acabou, não é nada, aquilo não virou nada”.

Acontecimentos trágicos se acumulam na mente de quem trabalha na área da saúde. No início da profissão, Hansen contava para a esposa o que presenciava no dia-a-dia. Com a experiência, ele percebeu que é melhor não falar do assunto: “Às vezes ela ficava chocada e falava ‘ai credo, não quero nem saber’. Aí percebi que é chato mesmo. A vida já é cheia de tristeza, não é fácil, não tem muito com quem dividir”.

No plantão, os profissionais costumam falar sobre sentimentos para os colegas de trabalho. Quando a ocorrência é grave, todos conversam entre si: “Na verdade é um extravasamento emocional”. No natal de 2002, a equipe se preparava para um culto ecumênico quando recebeu uma chamada urgente. Chovia muito e uma criança tinha sido levada pela enxurrada: “Eles até pegaram na mão da criança, mas ela entrou na valeta e morreu”. Todos ficaram abalados e voltaram chorando porque não havia o que fazer.

Para melhorar o estado emocional de quem tem uma atividade desgastante, há mais de um ano os profissionais do Samu têm à disposição uma psicóloga. Quase ninguém faz a terapia em grupo proposta pelo serviço. Hansen admite que o ideal seria a criação de um serviço de psicologia presente 24 horas por dia: “Mas a gente não tem essa possibilidade”.

Depois de muito planejamento da Secretaria do Estado, em 1996 o Samu foi inaugurado. Desde então, alguns profissionais não conseguiram trabalhar no local por mais de duas semanas. O motivo? A pressão emocional diária que é fazer parte de um serviço público de emergência.

Na sala, onde ficam os médicos à espera de chamados de socorro, está Eduardo Stéfano. De óculos e bom humor, ele explica as dificuldades de atuar no Samu. As tentativas de suicídio são as ocorrências mais trágicas na opinião dele, seja com remédios, enforcamento ou cortes no punho. O mais dramático foi um enforcamento no qual a chamada acusava cheiro de gás de cozinha. A equipe chegou e, por sentir cheiro de gás, chamou o Corpo de Bombeiros.

A porta foi arrombada. Dentro do local estava um homem morto: “Era um quartinho pequeno, o gás estava vazando, havia uma ‘senhora’ faca embaixo do travesseiro e o fio de telefone enrolado no pescoço. Ele deve ter sofrido muito porque errou o cálculo e ficou pendurado na ponta do pé. Comecei a pensar no motivo para ele ter feito aquilo. Pelo que ouvi, ele estava jurado de morte por causa de drogas. Antes de ser assassinado, se matou”.

A primeira reação de Stéfano foi retirar o homem, suspenso pelo fio de telefone, do local do enforcamento. O médico sabe que o ideal é deixar o corpo pendurado até a polícia técnica chegar. Naquela situação trágica, o motivo para a atitude de Stéfano foi a necessidade de acabar com a cena trágica.

Para dividir histórias e angústias, Stéfano conta com a ajuda da esposa, que é enfermeira na Unicamp: “Nunca fiz terapia, eu trabalho bem o que vejo, não fico pensando nem sonhando com as tragédias. Até poderia fazer terapia, mas para resolver outros problemas, não para aprender a lidar com a morte no dia-a-dia. Se alguém está na chuva, é para se molhar”.

Ele não se tornou médico por status ou porque “papai” queria. O pai de Stéfano, médico, deixava explícito que não fazia questão de ver alguém da família seguir a mesma profissão, mas Stéfano realmente queria ser médico: “Eu já trabalhei na área administrativa, já fui secretário de saúde, já fui superintendente de Santa Casa, mas a política é terrível, dá nojo. É mais angustiante a política do que a morte”.

Ao lado de Stéfano está o médico Alexandre Chicrala Filho, de atitude discreta e palavras contidas, ele também faz parte da equipe do Samu. Com o olhar sério, ele conta que não sente a morte como algo normal, mas entende a obviedade de que, na área da saúde, o profissional vai ter que enfrentar a rotina dos óbitos: “Normal não é, acho que nunca é para ninguém, quem fala que é natural está mentindo. Mas a gente tem outra maneira de entender isso. Às vezes as pessoas ligam aqui desesperadas quando alguém morre aos 95 anos. Puxa, isso é mais que natural”. Chicrala acredita em Deus, mas não na vida depois da morte: “Morreu, acabou”.

Enquanto os médicos conversam, o motorista de ambulância observa. Católico, Ronald Fernando Fortunato precisa dirigir em alta velocidade no trânsito de Campinas e convive com tragédias e perigos.

Uma vez, Fortunato foi buscar um homem baleado na favela. O autor do tiro ainda estava no local para garantir a morte vítima: “Ele subiu na ambulância e tentou balear o paciente de novo já na maca dentro da viatura”. Em outra ocasião, moradores de um bairro apedrejaram a ambulância, que demorou a chegar no local.

Fortunato não esconde que o que mais vê é gente morta: “Virou rotina”. Só não é rotina quando o óbito é de criança: “A gente fica morrendo de dó, os maus tratos, a condição social, isso que pesa um pouco”. Ele não faz terapia e confirma que poucas pessoas conversam com a psicóloga contratada para cuidar dos profissionais do Samu: “Acho que é falta de tempo, muita gente tem outros empregos”.

Na tarde ensolarada de agosto de 2003, algumas enfermeiras estavam sentadas em um banco de madeira no pátio do Samu. Protegidas pela sombra, Lely Mansur e Milena Pietro Bom Paiva conversavam.

Lely trabalha há 15 anos em urgência e emergência. Milena é estudante do primeiro ano de enfermagem da Universidade Paulista (UNIP). As duas demonstram paixão pelo que fazem e conservam no olhar algo que parece materno. As atitudes são calmas e a entrevista é fácil.

Em geral, as mulheres gostam de falar mais do que os homens. Contam histórias, falam de sentimentos e emoções. Lely escolheu ser enfermeira quando ainda era criança. Gosta de ajudar as pessoas e segue a profissão como um objetivo de vida: “Sou uma enfermeira felicíssima, adoro o que eu faço, sou uma pessoa privilegiada, encontrei uma profissão que realmente me completa”.

Cristã, Lely explica o que pensa sobre a vida depois da morte: “Você lembra dos átomos? Negativo e positivo? Quanto melhor você está espiritualmente, mais perto do núcleo você fica. Quanto mais energias negativas, chega uma hora que você dissipa. Diferente, não é?”.

Milena espera a vez de falar, calada e atenta aos depoimentos da colega. Começa a história pela infância, quando ouvia a pergunta fatídica dos pais: “O que você vai ser quando crescer?”. Até os sete anos de idade, Milena desejava ser bailarina. De uma hora para outra, sem explicação ou dúvida, decidiu ser enfermeira. Na família dela ninguém trabalha na área da saúde e o espanto foi inevitável. “Por que enfermeira?”, perguntaram. E ela, com toda convicção: “Eu quero cuidar dos outros, eu acho bonito ficar lá, dar apoio. Agora vou ter que sair”.

Neste momento acontece uma chamada urgente para socorrer uma PCR. Milena e Lely saem às pressas, sorrindo e com ternura no olhar. Explicam que PCR é parada cardiorespiratória. Não é possível acompanhar a ambulância. Apesar do convite das enfermeiras e do motorista, o coordenador médico é taxativo: “Se algo acontecer com você, eu sou o responsável, eles vão atravessar a cidade em alta velocidade, sempre existe o perigo”. A ambulância sai do pátio fazendo barulho. Enfermeiras, médico e motorista acenam. Vão salvar vidas.

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