quarta-feira, 4 de junho de 2008

Capítulo II

A hora da misericórdia


"Pelos quatro cantos da terra, a morte, a discórdia, a ganância e a guerra. E a guerra"
Carta aos missionários - C. Galvão, M. Hayena, N. Nunes


Jyl continua agitado. À noite ele teria que fazer uma prova na faculdade. Cadernos em mãos. Corpo na sala. Desconcentrado da tarefa que tinha pela frente, a audição despertou para o barulho que vinha do rádio. A mãe de Jyl, Constância, ouvia um programa religioso com atenção. Era a Hora da Misericórdia, três da tarde do dia 20 de maio de 1994.

Aquele era o momento do dia para se concentrar com fé e pedir uma graça, explica Constância para Jyl. Ele se curva para frente com o caderno no colo e faz seu pedido em silêncio.

Agosto de 2003: ao trazer da memória o último dia de Jyl, Constância chora. Pede um lenço para a filha Simone, professora de artes marciais e dona de uma doçura sublime. Ela cuida dos detalhes com a mãe que acabara de sair do hospital. Constância fez a segunda cirurgia no coração. A primeira foi há 30 anos.

Na sala, o televisor está envolto de porta-retratos. Jyl está entre eles. Foto de rosto. Na parede, um quadro com a figura de Jesus Cristo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.

Religião e fé ajudam a diminuir o sofrimento. Para Simone, que acredita em Deus e vai à missa, a crença foi positiva quando precisou enfrentar a dor de perder um irmão. O padre de uma igreja de Rio Claro a ajudou com palavras de conforto e fé. Simone estava deprimida. Na religião e na igreja ela encontrou acalento.

Enquanto alguns buscam a existência de Deus, outros preferem encontrar respostas no conhecimento empírico. Não por desrespeito às religiões, mas por ter uma personalidade contestadora como a do jornalista ateu José Arbex Jr.

Arbex escreveu mais de 25 livros e presenciou fatos históricos que não deixam dúvidas sobre sua experiência. Ele era correspondente internacional da Folha de São Paulo quando o muro de Berlim foi ao chão. Além de ter visto a história do mundo acontecer, Arbex tem o privilégio de poder contar como foi entrevistar personalidades como Mikhail Gorbachov, Ulisses Guimarães e Peter Gabriel.

Jornalista, escritor, professor e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Arbex se entregou à profissão de jornalista e enfrentou situações de extremo perigo, como estar dentro de um avião que era alvo de míssil. Hoje, aos 47 anos, o taurino com ascendente em capricórnio é editor da revista Caros Amigos, membro do Conselho Editorial do Jornal Brasil de Fato e professor da Puc em São Paulo.

Na tentativa de entrevistar Arbex, o primeiro contato para a entrevista foi feito por e-mail em um sábado de carnaval. A questão era a morte. O retorno veio quase que imediato. Nascia, então, a fonte que mais inspirou a continuação deste livro-reportagem.

Em letras minúsculas, a resposta explicava o mínimo: “Presenciei várias vezes a morte, de vários pontos de vista. No Paraguai, fui ameaçado de morte pelo ditador Stroessner (1986). No Haiti, estava em uma barricada quando um manifestante foi atingido por balas de metralhadora ao meu lado, podia ter sido eu (1986). No Afeganistão, viajei em avião soviético que era alvo de mísseis sting de muçulmanos (1988). Na Armênia, presenciei milhares de corpos após um terrível terremoto. Em Pequim, convivi por 40 dias com estudantes na Praça da Paz Celestial, muitos dos quais massacrados em 04 de junho de 1989. Na Romênia, cobri os resquícios dos combates que derrubaram Nicolau Ceaucescu. Ainda vi mães rezando por seus filhos diante de velas acesas em Bucareste (1989). Na Palestina, fui várias vezes medido por soldados portando fuzis, além de ter permanecido sob cerco de tanques de guerra em um hospital, em Ramallah (2002), fora acidentes pessoais, como dois capotamentos. Mas isso, não sei se conta...”.

Nos dois acidentes pessoais, ninguém morreu, ninguém se machucou. O carro ficou literalmente pendurado em uma árvore, à beira de um precipício de uns 50 metros. Arbex nunca achou que ia morrer e diz que tem o corpo fechado: “Vou morrer aos 94 anos, em 2051. Em 2050 vou dar minha última palestra para uma moçada adolescente e contar como foi a queda do muro de Berlim”.

A afirmação não é à toa. Nunca foi internado nem passou por cirurgias. Evita médicos alopatas e, quando necessário, procura se tratar com homeopatia ou acupuntura: “Acho que a medicina está equivocada, ela parte de uma divisão entre carne e espírito. Eu não acho que existe essa divisão. A doença não é uma manifestação de um órgão doente, a doença é a interrupção da energia vital. A doença mais grave que eu tive foi gripe”.

A juventude e a disposição do jornalista advêm do entusiasmo que sente pela vida: “Eu só vou ficar doente no dia em que eu perder o entusiasmo. Não me sinto com 47 anos, me sinto com 20. O dia em que eu fizer algo sem entusiasmo, vou considerar que estou mal. Aí eu acho que vou estar perto da morte”.

Apesar da resistência em falar da vida pessoal, Arbex foi se deixando conhecer. Até que a persistência deu lugar à realidade. Estava frente-a-frente com o jornalista de guerra que já entrevistou com exclusividade personalidades como Iasser Arafat e François Houtart. Aqui ele fala da morte, vida e terapia.

A risada é contagiante, quase hipnótica. Arbex não bebe e não se droga, gosta de estar sóbrio. Apesar da coragem explícita em sua profissão, já sentiu medo de morrer quando, no Afeganistão, o avião em que viajava era alvo de míssil. Ele achou que seria o fim. Mesmo tenso, conseguiu dormir enquanto os outros bebiam. Estava no avião com mais 20 correspondentes. A coragem, invejável para qualquer profissional ávido por notícias, existe para Arbex quando ele sente que é dono dos próprios passos: “O negocio é assim, se você está no chão, na barricada, você pula, rola, sai correndo, faz qualquer coisa, mas dentro do avião não. No avião você depende do piloto”.

Ao desafiar poderes, o jornalista foi capaz de trazer à tona notícias de várias partes do mundo. No Haiti, mesmo quando um manifestante foi metralhado ao seu lado, Arbex não desistiu. Na época, toda forma de comunicação estava fechada no país: “Fui para a central do correio do Haiti, o telex. Na porta tinha um sentinela armado com um fuzil e que ficava andando de lá para cá, na porta. Eu esperei ele me dar as costas, entrei na central do telex e comecei a escrever a notícia”. Se fosse pego, seria assassinado. Mas sentiu o corpo fechado:

“Eu não sei, é muito estranho o que acontece. Eu fico com o sangue frio, totalmente tranqüilo”. Arbex escreveu a reportagem sem rascunho. O texto saiu perfeito. Ele é capaz de escrever um livro em três semanas. Entre tantas notícias, Arbex se comove: “A hora que mais me comovi foi quando conversei, em 2001, com as crianças na Palestina. Foi quase insuportável ver crianças sendo assassinadas por um exército ocupante e não ter o que dizer a elas. É barbárie humana, não é terremoto, é gente provocando mortes”.

Quando presenciou o terremoto que matou 10 mil pessoas na Armênia, Arbex constatou de perto a força da natureza: “Ali eu senti a impotência da espécie humana, tão vulnerável e frágil. A vida é um acaso”.

Ele admite que fez sua carreira cobrindo jornalisticamente o sofrimento dos outros. Hoje, Arbex não se sente à vontade para falar da dor alheia: “É um conflito ético que surgiu na Palestina”. Ao desvendar as mazelas alheias, ele acreditava que fazia bem à comunidade.

Depois de analisar os fatos, Arbex acredita que falar da morte dos outros é uma espécie de violação da intimidade. Demorou algum tempo para chegar a essa conclusão.

Em 1999, houve um simpósio na Puc chamado O Estrangeiro. No encontro, Arbex pôde ouvir alguns psicanalistas. Uma delas, em particular, fez a diferença na vida do jornalista que destrinchava publicamente o conflito na Iugoslávia e a guerra civil na Bósnia.

Depois de todo o debate, a psicanalista iugoslava disse ao jornalista brasileiro: “Eu sei de tudo isso o que você falou, só que eu não falo, eu fico quieta porque eu acho muito violento falar da morte de outras pessoas”. Arbex não entendeu e tentou argumentar: “Se ela não fala, como as pessoas vão saber o que acontece?”. Na época, ele julgou aquele silêncio como algo idiota, mas em 2001 ele entendeu: “A morte é um sentimento intransponível. É como se, ao falar da morte, o mistério que ela representa fosse banalizado. Explicar o próprio fim não é problema porque você é responsável pelo seu mistério, mas não tem o direito de banalizar o direito do outro”.

O receio de Arbex é que, quando alguém expõe a morte alheia sem o devido respeito, tudo se torna unicamente uma estatística.

Arbex fez terapia durante uma década e parou por acreditar que está pronto para elaborar internamente o que foi analisado. No início, fazer terapia representava uma fraqueza, mas depois de quatro anos de análise, o preconceito deu lugar ao entendimento das próprias aflições.

Foi em 1990, quando ele estava em Paris, que percebeu que precisava de ajuda. Arbex estava na França para cobrir uma conferência européia: “Comecei a me sentir muito mal, solitário, aí eu pensei comigo mesmo: ‘Oh cidadão, é o seguinte: você estava mal e Nova Iorque, você culpou o capitalismo. Você ficou mal em Moscou, você culpou o socialismo. Agora você está mal em Paris, qual o seu problema? Você vai culpar quem? Os Campos Elíseos?’ Aí eu encarei que eu tinha um problema”.

Ele estava vivendo um mundo absurdamente intenso no ponto de vista das transformações políticas, revoluções, morte e luta. Com a carreira de jornalista em ascensão, ele percebeu que havia uma discrepância: “Minha vida virou um vazio preenchido por coisas que não eram pessoais, eram acontecimentos, então eu tive uma vida de acontecimentos. Ninguém vive desse jeito. Aí eu achei que estava na hora de procurar a psicanálise”.

Um dos problemas do jornalismo é que, para Arbex, não houve diferença entre vida profissional e pessoal: “Em tese, o jornalista não deve se envolver emocionalmente com os fatos e tem que ser objetivo. Eu nunca consegui fazer isso, eu me envolvo emocionalmente e manifesto minha posição. Isso produziu um desgaste psicológico muito grande. Eu fico puto, participo, vou para as manifestações. No final de tanta coisa aconteceu um desgaste emocional que até hoje eu não avalio direito”.

O assunto sobre morte foi discutido na terapia porque Arbex percebeu que, enquanto era relativamente fácil falar do fim da vida dos outros, era muito difícil falar da morte de alguma coisa dentro dele: “A morte na minha vida era uma coisa difícil. Então eu estava sendo hipócrita. Como é que eu falo da morte de todo mundo e não das coisas que têm que morrer comigo? E as coisas que eu tenho que matar dentro de mim? Como é que eu vou lidar com isso? Na psicanálise”.

2 comentários:

Anônimo disse...

Giselle:

Dos cinco filhos que tenho, a Laisa, terceira, hoje com 32 anos, fonoaudióloga mas agora mãe em tempo integral da Caroline, entende de morte e vida eterna.

Uma cirurgia até nem tanto delicada, no braço, a fez assistir fora do corpo, a correria, diálogos e anotações sobre uma sua parada cardíaca. Os médicos negaram esse fato até que ela informou a eles o que haviam escrito na ficha, o que haviam dito, quais procedimentos tomaram, quem entrou, quem saiu da sala.

Após assistir aqueles momentos, foi levada a um jardim de beleza, luz e cor indescritíveis, mas que ela o tem nas retinas e na mente até hoje. Depois disso, tornou-se uma pessoa incrível. Nada a abala, nem apaga seu sorriso permanente, nem sua doçura, atenção e interesse por todas as pessoas. Ela sabe o que nos espera após esta vida e vive cada segundo, sem medo do que virá depois.

Parabéns por este seu magnífico trabalho.
Roque Cezar

Ponto e Vírgula disse...

Sabe Roque,
Falar da morte e/ou conhecê-la de perto faz isso: poucos aborrecimentos nos abalam, e a vida fica muito mais bonita!
Obrigada pelo interesse :)
Abraço,
Giselle