quarta-feira, 4 de junho de 2008

Apresentação

Por Giselle Marques

O Brasil registra um milhão de óbitos por ano e a humanidade se transforma em estatística a cada dia. No município de Campinas o número de funerais gira em torno de 600 por mês e desses, a morte violenta abate 130.

O inverno atinge grande parte das pessoas mais velhas com suas gripes e pneumonias. Os mais jovens se matam no trânsito e a cura do câncer precisaria ser vendida em comprimidos nas farmácias. Existem falecimentos de maneiras inusitadas, como um senhor que estava colhendo manga para os netos quando caiu da árvore: não resistiu aos ferimentos.

Alguns procuram a inexistência em lâminas e cordas.

Entre tantos falecimentos existem profissionais especializados e experientes para lidar com a morte, seja para cuidar de um moribundo, melhorar a coloração de um corpo sem vida ou construir túmulos.

Os rituais existem para simbolizar o fim da vida. Com o tempo, os funerais foram modificados. O maior motivo para as mudanças é o avanço da medicina que permite o prolongamento da vida ou do sofrimento.

Se velar um corpo na sala da própria casa era comum, hoje, com as famílias dispersas, a correria das grandes cidades, prédios e elevadores, o mercado funerário se aperfeiçoa a cada dia para cuidar de todos os detalhes.

Ao conviver com o sofrimento e a morte alheia, enfermeiros, médicos, sepultadores, floristas, diretores e agentes funerários precisam enfrentar o preconceito de quem não entende que o trabalho consiste em amenizar o choque causado por aquilo que é iminente, o fim.

Da mesma maneira que o proprietário da mais tradicional funerária de Rio Claro, no interior do estado de São Paulo, descobriu como vender aquilo que ninguém quer comprar, este livro-reportagem procura desvendar realidades pouco exploradas na sociedade ocidental onde homens e mulheres fazem de conta que esqueceram a limitação da própria existência.

Discutir o sexo com quem fez voto de castidade é como debater a morte com quem fez voto de eternidade. E o ser humano, portador de uma vaidade quase insana, parece não admitir que um dia terá que se ausentar deste mundo.

Seria um equívoco afirmar que não existe material algum sobre o assunto, mas é muitas vezes escondido da mídia de massa ou de difícil e complexo acesso. O fim da vida é um assunto vasto e que atinge a todos, indiscriminadamente. A vida está repleta de morte e as pessoas tentam explicá-la e simbolizá-la de várias maneiras nos filmes, novelas, pinturas, charges, livros e jornais.

Os relatos contidos neste trabalho são de pessoas que vivem e convivem com o sofrimento, seja nas patologias que matam, na fatídica certeza dos acidentes ou nos constantes rituais fúnebres.

Empresários e profissionais que trabalham para simbolizar a morte fazem deste livro um material que fala de dor, saudade e lucro.

Para marcar a importância da qualidade dos velórios, há cinco anos o Centro de Tecnologia em Administração Funerária (CTAF) organiza a Funexpo, uma exposição funerária que de dois em dois anos traz novidades e tradições, reunindo empresários do Brasil e do mundo.

Diferentes personagens foram selecionados para a realização da pesquisa: o rapaz que teve seu último dia de vida relatado pela mãe e irmã depois de 10 anos de sua morte; o jornalista que noticiou guerras e depois enfrentou as próprias aflições na terapia; a enfermeira que precisou lidar com a morte de crianças e o profissional que tentou organizar o tumulto no Cemitério da Saudade quando aconteceu o sepultamento do prefeito de Campinas, Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, assassinado em 2001.

Ao analisar materiais publicados em livros, sites, revistas, filmes e programas de televisão, foi possível observar a ausência de aprofundamento na abordagem de temas relacionados à morte.

O longa-metragem que pode retratar a vida dos agentes funerários é o filme Sábado, de Ugo Giorgetti. Em uma das situações do filme, três pessoas vivas ficam presas dentro de um elevador com uma pessoa morta. Dois homens são agentes funerários e a mulher é uma publicitária interpretada por Maria Padilha, que repete em desespero: “Eu preciso acreditar em Deus!”.

Existem teses e filosofias que explicam o fim da vida, mas pouco é dito sobre o dia-a-dia de quem não tem tempo para aprender filosofia ou fazer terapia, mas que trabalha em constante contato com o sofrimento das pessoas. No mercado, são poucos os cursos que preparam o profissional para a necessidade de lidar, de forma humana e não técnica, com a presença e o tabu da morte.

As fontes para o livro-reportagem foram escolhidas de acordo com a profissão: o jornalista José Arbex Jr. que conviveu durante anos com guerras e mortes; a psicanalista Adriana Fiori que realizou uma pesquisa, a pedido do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), com 50 famílias que tinham perdido parentes em acidentes no trânsito de São Paulo; o empresário Valdemar Bresciani que, contrariando a tradição de funerárias familiares, desde 2000 é proprietário de uma fábrica de urnas em Santa Catarina (a urna vendida para o funeral do jornalista Roberto Marinho foi feita na empresa Irmãos Bresciani).

Além das fontes citadas, foram feitas visitas pessoais em algumas funerárias, cemitérios, serviços de emergência e residências para que a realidade do dia-a-dia desses profissionais pudesse ser vista de perto, não somente por relatos. Nem todas as fontes puderam estar presentes na narração deste livro, mas cada uma delas foi importante para possibilitar maior conhecimento na elaboração das pautas.

Uma das fontes é meu pai, o que não tira a importância jornalística do fato é que conheci a história da minha família paterna no término das entrevistas para este livro. Eu sabia vagamente que muitos morreram por causa da doença de chagas. Mesmo depois da entrevista, que não foi facilitada pelo fato da fonte ser meu pai, percebo que ainda sei muito pouco sobre os acontecimentos, o que não possibilitou narrar a história com domínio, afinal, Machado não fala de quem já morreu.

Mesmo ciente da obrigação ética e jornalística de ouvir todos os lados de uma história, alguns casos não puderam ser devidamente investigados. A indenização determinada pela justiça de Rio Claro às 19 famílias que perderam parentes em um desastre há 10 anos ainda precisa ser paga a três famílias. Saber os motivos não foi possível por falta de tempo hábil e patrocínio, mas certamente vários pontos de vista tiveram espaço neste livro-reportagem, que vai mostrar uma realidade que poucas pessoas ousam saber.

A narração não obedece a uma ordem cronológica, vai e volta no tempo de acordo com os fatos que se interligam. As duas cidades abordadas para tratar do tema são Rio Claro e Campinas por causa de um acidente ocorrido há 10 anos na Rodovia Fausto Santomauro, a SP-127.

Dois grandes veículos se chocaram. O motorista do ônibus era de Rio Claro e o motorista do caminhão-tanque era de Campinas. O desastre foi comparado a uma situação de um ônibus que cai de uma altura correspondente a nove andares.

O acidente é narrado em sete dos dez capítulos do livro. São abordados os vários estágios da tragédia, desde a cobertura jornalística, quando os repórteres conseguem, muitas vezes, chegar antes do socorro especializado, até os protestos de rio-clarenses e o trabalho de alguns políticos pela duplicação da SP-127.

Depois do título de cada capítulo foram escolhidas citações de livros e músicas que refletem dor ou nostalgia. No primeiro capítulo a frase citada foi retirada de um artigo de jornal sobre a tragédia de 20 de maio de 1994. O artigo foi recortado e guardado durante dez anos por Simone, irmã de Odajyl Pessoa, vítima fatal do acidente ocorrido na SP127. A escolha de poetas, escritores e músicos com menos de 100 anos de idade a partir da data de nascimento foi pré-requisito.

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